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Carta de Foral

III - ESTUDO DA CARTA DE FORAL ANTIGO DE D. AFONSO HENRIQUES (1136)

TEXTO EM LATIM BÁRBARO

1136 NOVEMBRO, 19 – D. Afonso Henriques concede, em favor de Uzberto e sua esposa, carta de foral a Miranda-do-Corvo.

STABILITATIS CARTA DE FORO DE MIRANDA

In Christi nomine. Ego Alfonsus Purtugalensium princeps, comitis Henrici et regine Tharasie filius magni quoque regis Alfonsi nepos, spontanea mea volumtate conpulsus facio cartam firmitudinis tibi Uzberto et uxori tue Marine de stabilitate et de foro de Miranda a me constituto quod jubeo hominibus qui ibi conmorati fuerint reddere. Cujus constitutio ita fiat: Homo agricola de uno bove unum quartarium reddat. De lino unum manipulum. De vino autem nonam partem. Et ipse agricola qui rationem dederit in celario non det condatum de monte. Miles autem suam rationem defendat et de suis hominibus habitantibus in hereditate sua et si equm perdiderit usque ad duos annos rationem defendad et exinde si non potuerit equm habere det rationem. Et si mortuus fuerit miles mulier illius dum se bene continuerit sit honorata sicut in diebus mariti sui. Et si aliquis miles senuerit stet honoratus et rationem defendat. Sagitarius similiter faciat. Clericus qui ibi moratus fuerit stet in honore militum et tributum ecclesie reddatur episcopo sicut de Arozi. Cunelarius de una morada quam in monte fecerit reddat unum conelium cum sua pelle. Montarius de melle et cera det medium cubellum mellis aut rede 1 de cera. Ille qui peias in monte posuerit ad venandum det inde lumbum cum quatuor costis. Et si aliquis rausum conmiserit tertiam partem calumpnie conponat. Et qui homicidium, aliud tantum, sed si intus castellum contigerit sexaginta solidos. Homo qui alium hominem ferierit intret sibi in manus flagellis sicut fuerit judicatum et judici terre similiter faciat. Et qui in alienam domum per vim introierit cum armis triginta solidos conponat. Homo qui pugnam fecerit lancea et clipeo X solid os tribuat. Qui vero cum porrina V solidos. Ille vero qui sayonem ville ferire presumserit X solid os reddat. Qui etiam judicem ferierit aut pulsaverit mala mente XX solid os conpo[nat]. Ille qui de vicino suo injuriam habuerit vicario ville querimoniam faciat et si noluerit emendare pignoret ilium pro uno solido et si adhuc emendare se noluerit sepius ilium pignoret de uno solido donec veniat ad directum. Iste calumnie supranominate stent in exquisitione bonorum hominum. Hanc firmitudinem facio et jure perhenni in forti statu suo ese semper permito atque concedo. Qui vero istum meum factum infringere voluerit sit excumunicatus Dei Omnipotentis et semper maleditus permaneat usque veniat ad satisfaccionem. Facta stabilitatis carta X.º III.º Kalendarum Decembris, EraM. C. L.XX. IIII.ª.

Pro testibus: Bernaldus episcopus adfuit, Fernandus ts., Gundisalvus Diaz ts., Pelagius Goteriz ts. – Martinus ts., Petrus ts., ego Egas Monionis curie dapifer ts., Fernandus Captivus alferez ts., Ramduffus Zoleimaz ts.

Johannes subdiaconus notuit. PORTUGALI.

TRADUÇÃO DO TEXTO LATINO DA CARTA DE ESTABILIDADE DOFORO DE MIRANDA

Em nome de Cristo. Eu, Afonso, príncipe dos Portugueses, filho do Conde Henrique e da Rainha Teresa, e também neto do rei Afonso Magno, movido por minha espontânea vontade, a ti, Uzberto, e a tua mulher Marina, faço carta de confirmação, de estabilidade e de foro de Miranda por mim estabelecido, o qual mando dar aos homens que aí morarem e cuja constituição fica expressa do seguinte modo: O homem lavrador, de um boi, dá um quarteiro.

De linho, um manípulo. Também de vinho dá a nona parte. O mesmo lavrador que tiver dado a sua parte para o celeiro, não dará contribuição do que colher no monte. Também o cavaleiro-vilão deve defender a sua parte e a de seus homens que habitam na sua propriedade; e, se perder o cavalo, até ao fim de dois a nos receba a sua parte e, a partir de então, se não puder adquirir outro, pague os devidos direitos. E, se o cavaleiro morrer, se a sua mulher continuar digna, que seja honrada como no tempo de seu marido. E, se qualquer cavaleiro envelhecer, mantenha-se respeitado e defenda os seus direitos. Ao besteiro que se faça do mesmo modo. Que o clérigo que aí morar tenha os mesmos direitos dos soldados e que seja pago o tributo ao bispo da igreja assim como os de Arouce. O cuniculário de cada estada que fizer no monte paga um coelho com pele. O monteiro que se dedica às abelhas pague meio cubelo de mel e o equivalente de cera. Aquele que puser armadilhas no monte para caçar pague um lombo com quatro costelas de um animal. Se alguém cometer um rapto com violação pague pelo dano a terça parte. E aquele que praticar homicídio, faça-se-lhe a mesma coisa, mas se isso acontecer dentro do castelo, pague sessenta soldos. O homem que ferir outro homem receberá do ofendido a pena dos açoites conforme for julgada ou será entregue ao juiz da terra para que proceda de modo semelhante. E aquele que entrar por força, com armas, em casa alheia, pague trinta soldos. O homem que travar luta com lança e escudo, pague dez soldos. E o que o fizer com clava de pau pague cinco soldos. Aquele que também ousar ferir o saião da vila pague dez soldos. O que ferir o juiz ou lhe bata premeditadamente pague vinte soldos. Aquele que sofrer uma ofensa do seu vizinho faça queixa ao vigário da vila e se não quiser emendar-se seja penhorado num soldo e, se a partir de então, nau se quiser corrigir, continue a ficar penhorado num soldo ate que venha a corrigir-se. Estas supranominadas penas que sejam precedidas de provas de inquérito dos homens-bons. Faço esta confirmação e prometo e concedo que se mantenha por direito perene em tudo o que foi estabelecido com vigor. Aquele que, porém, quiser infringir este meu regulamento, seja excomungado de Deus omnipotente e permaneça sempre maldito até que venha a corrigir o mal feito. Esta carta de estabilidade foi feita no Xº IIIº dia das calendas de Dezembro, na Era de M.C.L.X.X.IIII.

Por testemunhas: O bispo Bernaldo esteve presente; a testemunha Fernandus; a testemunha Gundisalvus Diaz; a testemunha Pelagius Goteriz; a testemunha Martinus; a testemunha Petrus; eu Egas Monionis, dapífero da Cúria, testemunha; Fernandus Captivus, alferes, testemunha; Ramduffus Zoleimaz, testemunha.

O subdiácono Johannes escreveu. PORTUGAL.

IDEIAS EXPRESSAS NA STABILITATIS CARTA DE FORO DE MIRANDA

O rei, ao conceder a Carta de Foral, pretendia o fortalecimento da organização do povo, preparando-o para resistir por si contra todo o tipo de agressões, como opina Alexandre Herculano.

Os forais seriam então códigos de direito público através dos quais se pretendia regulamentar, concretamente, os tributos e as garantias dos cidadãos, baseando-se no direito de defesa pessoal e/ ou colectiva, na solidariedade municipal e na própria força. Aí se estabeleciam os direitos e os deveres dos indivíduos em relação à Coroa, ao Senhorio, ao Município e entre os próprios indivíduos. Do que temos vindo a dizer, resulta que, além das penalizações e multas de tipo pecuniário, havia também os tributos que eram percentuais em relação aos produtos das colheitas agrícolas.

As violações e transgressões de caracter moral correspondiam, por vezes, penalizações hoje consideradas de extrema desumanidade, mas que não eram nem mais nem menos do que a generalizada aplicação da antiquíssima pena de talião, nas suas variantes mais ou menos actualizadas para o espaço em que se faziam sentir e para o respectivo tempo.

- A Stabilitatis Carta foi concedida pelo príncipe dos portugueses D. Afonso Henriques.

- Concedida a Uzberto e a sua mulher Marina.

- O agricultor tinha que pagar um quarteiro de pão do produto resultante do trabalho de um boi.

- Do linho produzido pagava um manípulo.

- Do vinho pagava a nona parte.

- Se pagasse os seus direitos ao celeiro, não pagaria os dos produtos do monte.

- O cavaleiro-vilão (miles = soldado) não pagava a sua ração nem a dos seus homens que habitavam na sua propriedade.

- O mesmo, se perdesse o cavalo, nos dois anos futuros não pagaria; mas, se a partir dai, não pudesse adquirir outro, passaria a pagar, o que quer dizer que passava a ser jugadeiro.

- Se ele morresse, a sua mulher continuaria a ser respeitada como em vida de seu marido.

- Com o besteiro (sagitari), acontecia a mesma coisa.

- O clérigo que ai vivesse usufruía das mesmas honras do cavaleiro vilão, mas, ao bispo, era pago o tributo da igreja o que também acontecia com os de Arouce.

- O caçador de coelhos no monte pagaria um coelho com pele.

- O trabalhador do monte que se dedicasse a cultura das abelhas pagaria meio cubelo de mel e o mesmo de cera.

- O caçador do monte que armasse laços aos animais selvagens (veados, javalis) pagaria um lombo com quatro costelas.

- Aquele que cometesse um rapto e forçamento de mulher pagaria ao senhor a terça parte da pena.

- Aquele que praticasse homicídio pagaria outro tanto, mas se fosse dentro do castelo, pagaria sessenta soldos.

- Aquele que ferisse outro homem deveria ser-lhe entregue para que o ofendido executasse a pena dos acoites segundo o julgamento ou ficasse para isso a disposição do juiz da terra.

- O que entrasse em casa alheia por força, usando armas, pagaria trinta soldos.

- Aquele que desse origem a briga com lança e escudo pagaria dez soldos.

- O que o fizesse à paulada pagaria cinco soldos.

- Aquele que tentasse ferir o saião da vila pagaria dez soldos.

- O que ferisse ou batesse no juiz premeditadamente pagaria vinte soldos.

- O que sofresse injúria do seu vizinho devia fazer queixa ao vigário da vila e, se ele não quisesse reparar o mal, ficaria penhorado num soldo; e, se permanecesse no seu erro, continuaria a ficar penhorado na mesma quantia até se corrigir.

- Estas multas dependem de ter precedido prova por inquérito dos homens-bons. Note-se, porem, que todos os que cometem crimes, sem excepção, são abrangidos pelas penas respectivas.

É digna de ser citada a afirmação de Herculano acerca de Foral de Miranda: «Existe, pois, em Miranda um vigário, cargo que, como sabemos, correspondia em geral ao de mordomo, e um juiz que julga com intervenção de homens-bons. Sem a coexistência de cavaleiros e peões, Miranda seria um concelho imperfeito da terceira fórmula.» ()

É claro que estas afirmações do nosso grande historiador dizem respeito à diferenciação por ele encontrada entre os vários forais, o que o levou a agrupá-los em várias categorias, como daí se pode inferir.

Parece-nos interessante notar também que Miranda, com o desenrolar do tempo e dos acontecimentos quanto à evolução histórico-económica do país, vai perdendo a pouco e pouco a sua importância inicial. De facto, no reinado de D. Dinis, se a compararmos com a de outras povoações, podemos confirmar a justeza desta asserção, já que Arouce (Lousã) contribuía com doze besteiros, Penela com seis, Coimbra com trinta e um, Montemor-o-Velho com vinte e um, Santarém com setenta e Miranda com quatro.

GLOSSÁRIO DO FORAL ANTIGO

Homo agrícola – Lavrador, agricultor.

Quartarius – s. m. - A quarta parte do moio; a quarta parte de uma medida; a quarta parte do sextário (medida para sólidos e líquidos). É sobre o produto dos terrenos cultiváveis que o foral impõe o quarteiro, que será a quarta parte do cereal produzido por um terreno preparado por um boi durante um dia de trabalho.

Manipulus – s. m. - Punhado, porção de hastes que o ceifeiro abrange com a mão esquerda, para as cortar com a mão direita; mancheia, molho, feixe. De lino unum manipulum, isto é, um feixe ou molho de linho.

Ratio – s. f. - Renda parciária. No documento, corresponde à terceira parte da produção.

Celarium – s. neutro - Despensa, copa. Provisões que se guardam na despensa. No documento, tem o sentido do português celeiro.

Miles – s. m. - Cavaleiro vilão; soldado.

Condatus – s. m. - Tributo sobre a caça e a pesca.

Factum – s. neutro - Facto, feito, acção, trabalho.

Sagitarius por sagittarius – s. m. - Besteiro, frecheiro, sagitário.

Hereditas – s. f. - Nos documentos antigos, tinha o significado de propriedade. Acção de herdar, herança, aquilo que se herda.

Clericus – s. m. - Clérigo, padre, religioso. Também neste, como em outros forais, os besteiros e os religiosos que habitavam nos respectivos concelhos eram equivalentes aos cavaleiros-vilãos: «clericus... stet in honore militum».

Ecclesia ou aecclesia – A igreja como instituição; assembleia, reunião.

Arozi – top. - Povoação situada junto da foz da ribeira de Arouce e que tomou o nome de Foz-de-Arouce.

Cunelarius por cunicularius – s. m. - Caçador de coelhos.

Directum – s. m. - Em linha recta, alinhado, recto, direito. Ad directum - rectamente.

Domus – s. f. - Casa. In alienam domum - entrar em casa alheia.

Forum – s. m. - Contrato singular ou colectivo pelo qual era cedida uma terra, mediante o pagamento de determinada quantia anual, ou essa mesma quantia.

Cone!ius – s. m. - Coelho. Aparece na expressão pelle de conelio. Surge também como nome de pessoa noutros documentos: Didago Conelio (Doc. datado de 7 de Março, de 1144).

Montarius – s. m. - Aquele que vive e caça no monte.

Vicinus – s. m. - Vizinho.

Cubello – s. m. - De cupa, ae e de cupella, ae - cuba; cuba pequena; vasilha que servia de medida para líquidos. Ainda hoje, os recipientes da galga ou roda grande da azenha, onde cai a água da levada, se chamam cubelos.

Lignum por !inum – s. neutro - Linho. Manipulus de ligno ou de lino.

Vinum – s. neutro - Vinho.

Peia – s. f. - Lat. pedica. Esta palavra, neste documento, tem o sentido da própria palavra latina pedica, ae: armadilha para apanhar animais pelas pernas ou pelos pés. Correia, corda, laço, ou corrente com que se prendem os pés dos animais para não os deixar andar ou para lhes impedir a corrida.

Lumbus – s. m. - A parte de um animal de um e do outro lado da espinha dorsal e que e considerada da melhor carne. O documento usa a expressão: det Lumbum cum quatuor costis, isto é, dê ou pague um lombo com quatro costelas – o que nos leva a compreender que deve ser de certos animais como o veado ou o javali.

Rausus por raussus – s. m. - Rapto e forçamento de mulher, mas também a multa judicial correspondente.

Calumpnia por calumnia – s. f. - Pena pecuniária que o criminoso, independentemente de qualquer combinação com a vítima, devia pagar ao rei ou ao senhorio da terra. Era também o

pagamento ao ofendido ou aos seus familiares de certa quantia que era variável de acordo com a natureza e a gravidade do delito. Ofensa, crime.

Solidus – s. m. - Moeda antiga, de ouro, de prata ou de cobre, de valor variável. Soldo.

Clipeus ou clypeus – s. m. - Escudo redondo, côncavo, e geralmente de metal. Defesa, protecção.

Porrina – s. f. - Segundo o «Elucidario» de Viterbo, era a clava ou maça de pé curto e cabeça de ferro ou de pau. Ainda segundo o mesmo autor: Porrinha, cachaporra pequena, clava ou maça de hástia curta, defesa e proibida.

Judicatum – s. m. - Multa judicial.

Sayonem – s. m. - Trata-se de uma forma do acusativo e corresponde ao português arcaico sayom ou sagiom, do latim peninsular sagione. Oficial subalterno de justiça, verdugo, algoz.

Mala mente – Expressão que, à letra, significa com mente má, isto é, de má vontade ou com má intenção. A partir dela, como de muitas outras idênticas, verificamos claramente a formação do advérbio de modo em português: mamente.

Querimonia – s. f. - Queixa. Esta palavra viria a dar o português actual cerimónia.

Pignorare – v. tr. - Penhorar. Apreender alguma coisa. Este verbo, do latim vulgar, está relacionado com pignus, i, que designa coisa penhorada. Mas pignus, na Idade Media, podia não ter o sentido de apreensão judicial, mas qualquer objecto de outrem que uma pessoa tomava para si para se segurar contra uma divida. No Foral de Proença, aparece: Qui tulerit pignus judici pectet 1 solidum.

Permitto (var. promitto) – l'. tr. - Latim promittere - Obrigar-se a fazer ou a dar alguma coisa; comprometer-se, oferecer.

Dapifer – s. m.- Dapífero, nome antigo. Era aquele que servia a mesa do rei, dos bispos, dos nobres e dos ricos.

Alferez – s. m. -Do lir. alferir; ou al-faris - Antigo oficial que era o porta-bandeira. Podia exercer o comando supremo do exército na ausência do rei (alferes-mor) e, quando este comandava a hoste, o alferes empunhava a bandeira.

Subdiaconus – s. m. - Aquele que recebeu a ordem de epístola, que e a primeira das maiores.

Exquisitio – s. f. - Pesquisa, busca.

Boni homines – Homens-bons. Eram assim chamados os chefes de família de um território, vila, cidade ou outra povoação, que viviam em casa própria e que usufruíam de certos direitos políticos.

CAPÃO, António Tavares Simões, As cartas de Foral de Miranda do Corvo. Mirante – Cooperativa de Informação e Cultura, Miranda do Corvo, 1989, págs. 29-38

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