Grades abertas à recuperação

Texto e foto de André Teixeira

Pense num presídio em que a chave da porta está nas mãos de um dos detentos. Estranho? Pense, então, que nesse mesmo presídio, os presos manuseiam estiletes, martelos, machados e outras ferramentas que, sem muito esforço, poderiam se transformar em armas letais. Esquisito? Imagine, finalmente, que lá os condenados – ou "recuperandos", como eles preferem ser chamados – fazem as refeições com talheres de metal, têm água quente nos chuveiros e gelada nos bebedouros e só ficam nas celas na hora de dormir. No resto do dia, trabalham – muitos fora dos muros –, estudam, praticam esportes...se recuperam, enfim.

Esse presídio não é imaginário, e também não fica na Suíça, Dinamarca ou qualquer país com IDH de sonhos. Esse presídio, que não tem guardas armados, fica em Itaúna, cidade com cerca de 90 mil habitantes no Centro-Oeste de Minas Gerais. E não se trata de um caso único: é um dos 48 Centros de Reintegração Social (CRC) geridos dentro do modelo da Apac – Associação de Proteção e Amparo aos Condenados –, desenvolvido pela Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC).

A Apac é uma entidade civil, sem fins lucrativos. Se mantém através de doações, parcerias e convênios com o poder público, instituições educacionais e ONG´s. Os Centros são geridos por voluntários e alguns poucos funcionários. O modelo aposta na humanização das prisões como forma de possibilitar a recuperação e reinserção social dos detidos, evitando a reincidência. A ideia básica é a de que, com trabalho, responsabilidades e amparo jurídico e espiritual, os presos têm mais chances de deixar o crime. O envolvimento da sociedade no processo ajuda não só a pagar as contas, mas também a diminuir o preconceito que paira sobre os condenados, tenham cumprido a pena ou não.

Os presos fazem praticamente todas as tarefas do Centro, em sistema de rodízio. Cuidam da portaria, da entrada e saída dos que estão nos sistemas aberto e semiaberto, da cozinha, limpeza e manutenção. Alguns trabalham na horta e no viveiro de mudas, separados do mundo exterior por uma mera cerca de arame. Apesar da facilidade, poucos pulam o muro. Desde a abertura da unidade de Itaúna, em 1997, 418 presos deram uma escapadinha, mas a ideia não parece ser muito boa: 383 voltaram por conta própria. “As próprias famílias nos pressionam para não fazer nada de errado, porque sabem que as condições na Apac são muito boas, principalmente em comparação às cadeias comuns”, diz o detento Bruno Barcelar.

A comparação também é vantajosa quando o assunto é reincidência. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 15% dos egressos das Apac´s voltam a cometer crimes. No sistema penitenciário comum, o número chega a 70%. "Esse índice se deve ao compromisso que os próprios recuperandos assumem de se reajustar à vida de forma honesta", analisa o juiz Paulo Antonio de Carvalho, de Itaúna, um dos responsáveis pela implantação do método na cidade. Outra vantagem do modelo é a economia. Com poucos funcionários – e sem a necessidade de armas –, seu custo mensal é de um salário mínimo e meio por preso. No sistema comum, chega a cinco salários.

A ordem é mantida pelos próprios detentos. Organizados num “Comitê de Sinceridade e Solidariedade” eles resolvem cerca de 85% dos casos de indisciplina, dos leves – atrasos para aulas ou trabalhos, falta do crachá, cabelo despenteado – aos graves, como porte de drogas ou celulares. “Se um erra, todos são prejudicados. Assim, um toma conta do outro”, explica Claudio Firmino, outro detento. As punições mais brandas vão de advertências verbais a alguns dias de isolamento. Nos casos mais sérios, podem significar a temida volta ao sistema comum. Períodos de bom comportamento, por sua vez, permitem “mordomias” como aluguel de DVD´s nos finais de semana ou banhos de lua.

Não há nenhuma restrição para o acesso a uma Apac. Mesmo autores de crimes graves podem ser aceitos – caso de Bruno, ex-goleiro do Flamengo, condenado por assassinato, que conseguiu uma vaga na unidade de Santa Luzia, também em Minas. Parte-se do princípio de que todos podem se recuperar. “São quatro critérios: o preso já tem que ter pena estabelecida, possuir vínculos familiares na comarca da unidade, manifestar por escrito seu interesse em mudar de vida e, finalmente, o de antiguidade, ou seja, estar em primeiro lugar na fila”, explica o secretário-executivo da FBAC, Eduardo Neves. O mais difícil, como se pode imaginar, é conseguir um espaço no disputado “paraíso” do sistema penitenciário brasileiro. Na unidade de Itaúna, por exemplo, todas as vagas estão ocupadas.

O modelo Apac é reconhecido pela Organização das Nações Unidas e classificado como política pública do Governo de Minas Gerais. Apesar dos bons resultados, ainda não está disseminado como poderia. Só há unidades em cinco estados (além de Minas, Espírito Santo, Maranhão, Paraná e Rio Grande do Norte). “A principal dificuldade talvez seja a falta de recursos para a construção de novos Centros”, avalia Neves. Uma situação a lamentar, para ele. “A Apac não é uma solução para o grave problema penitenciário do Brasil, mas uma alternativa viável, que tem apresentado bons resultados”, conclui.

Made with Adobe Slate

Make your words and images move.

Get Slate

Report Abuse

If you feel that this video content violates the Adobe Terms of Use, you may report this content by filling out this quick form.

To report a Copyright Violation, please follow Section 17 in the Terms of Use.