MONOGRAFIA VILA DE MIRANDA DO CORVO

Após “Da Arte de Miranda - Subsídios para uma monografia artística dos principais monumentos do concelho de Miranda do Corvo”, datada de 2002, o presente trabalho pretende ser mais um contributo para a elaboração de uma Monografia completa sobre o Município mirandense.

A “moda das monografias”, se é que assim podemos chamar, veio para ficar, talvez porque seja mais do que isso mesmo: uma simples moda. Trata-se, isso sim, de uma aposta na preservação da memória colectiva. Numa época de globalização, como a que atravessamos, em que o receio de perda da identidade dos lugares é uma questão premente, tende-se a sublinhar cada vez mais essa própria identidade. Por esse país e pelo estrangeiro, deparamo-nos cada vez mais com o “Concelho, Capital de ...”, uns com mais e outros com menos legitimidade. Esta espécie de bairrismo, se saudável e bem aproveitado, ajuda à perpetuação dos valores comuns de uma comunidade.

É, pura e simplesmente, a constatação da importância da História na vida comum. O seu desiderato principal mantém-se – através do conhecimento do passado, poder compreender o presente e perspectivar o futuro. E este passará, sem dúvida, pela defesa da nossa herança, das nossas tradições e dos nossos valores, pelo seu conhecimento e divulgação a quem nos pretenda conhecer e, sobretudo, a quem depois de nós vier.

Esta nova edição, patrocinada pelo Município mirandense é mais um contributo feito de recolha de textos de vários autores, da sua crítica e enquadramento histórico. Não é ainda o fim do caminho, mas a sua continuação. Há ainda personalidades e instituições que não estão convenientemente retratadas neste trabalho em muitos dos casos por falta de elementos concretos e pela dificuldade do nosso arquivo municipal.

Deixo aqui o agradecimento a todos os que acreditam no meu trabalho e a quem o tornou possível.

O Autor, António Manuel Carvalho Rodrigues

Introdução geográfica
Miranda do Corvo, vila sede de concelho, pertence ao distrito de Coimbra. Tem uma área de 127,28 Km2, distribuída por cinco freguesias: Lamas, Miranda, Rio de Vide, Semide e Vila Nova, englobando uma população residente de cerca de 15 000 habitantes. O Município é delimitado pelos vizinhos concelhos de Vila Nova de Poiares, Lousã, Figueiró dos Vinhos, Penela, Condeixa-a-Nova e Coimbra.

“O Alto do Calvário domina a vila, com um lindo panorama sobre o vale e as encostas verdejantes, pontilhadas de povoados.” (BORGES, 1987). Sobressaem os altos de Salgueiro, Espigão, Tróia e Pessegueiro. A área principal do concelho corresponde às freguesias de Miranda e Vila Nova, situadas, quase na totalidade, na extensa bacia fértil que vai da vila até ao sopé da serra que corre da Lousã para o Espinhal e que, no concelho, toma os nomes de Espinho e de Miranda; a parte norte é acidentada, e a serra de Semide, que vem do Ceira até à vila, abriga as freguesias de Semide e Rio de Vide. Pelo sul, o concelho é delimitado pela serra e pelas ondulações irregulares que ligam com Penela. A parte poente é constituída pela freguesia de Lamas, formada por terras que lhe dão o nome e onde predomina o cultivo da vinha.

O concelho é contemplado pelo rio Dueça nascido na vizinha Penela, orientado no sentido S-N e que tem como principal afluente a ribeira do Alhêda, que nasce próximo da aldeia serrana do Gondramaz, e atravessa a vila. Esta é atravessada pela estrada nº. 342 que, de Lamas, segue para a Lousã; e pela nº. 17-1 que vem de Semide e segue para o Espinhal. Uma nova via rápida vai ligar Condeixa à Lousã.

Economicamente assiste-se a um intensificar do sector terciário em desproveito do primário. A indústria tem alguns exemplos. A vila é servida pela linha-férrea do “Ramal da Lousã” que, entre Miranda e Coimbra, nos dá a conhecer a bela mata da Trêmoa, outrora foreira do cabido da Sé de Coimbra.

Geologia e paisagem

Geologicamente, a Vila de Miranda do Corvo integra-se numa área de transição de várias unidades morfológicas o que lhe confere uma certa indefinição e, simultaneamente, uma grande variedade de características: no terminus ocidental da plataforma do Mondego a que corresponde, também, o extremo da bacia da Lousã (de origem tectónica e preenchido por materiais pertencentes aos períodos geológicos que vão desde o Cretácio, da Era Mezozóica, ao Quaternário); junto ao extremo ocidental da Cordilheira Central e ao extremo meridional do Maciço Marginal de Coimbra que, pelas suas altitudes, a confinam e dominam topograficamente.

Miranda do Corvo encontra-se instalada no fundo de uma depressão, ou bacia quase fechada, e cuja constituição geológica é altamente favorável à sua rápida erosão e, consequentemente, ao alargamento das formas de ablação que entretanto nela se vão desenvolvendo, nomeadamente vales e valeiros.

Como formação geológica mais uniforme salienta-se a Serra da Lousã, orientada na direcção NE-SO, fazendo parte do complexo xisto-grauváquico das Beiras; verifica-se, também ao longo da paisagem no concelho, afloramentos de rochas xistosas do Maciço Hespérico pertencentes a este maciço (Serra da Lousã). Na união com o concelho da Lousã encontra-se uma formação de xistos luzentes. Predominam, também, os arenitos avermelhados e arenitos claros conglomerados. Notam-se alguns afloramentos de granito perto da Vila e na área da Serra de Vila Nova.

Em termos geomorfologicos, o concelho pode ser compreendido através de quatro paisagísticas principais: Maciço marginal; Depressão marginal; Xistos do maciço hespérico; Bacia de Miranda do Corvo e envolvente.

A hidrografia compreende os Dueça e Ceira e as ribeiras: Alhêda; Padrão; Azenha; Espinho; Sra. da Piedade; Cerejeiras; Fervenças; Urzelhe; Trémoa; Vale; Donas e Tapada.

O concelho é banhado pelo Rio Dueça nascido no vizinho concelho de Penela, que corre sensivelmente no sentido S-N e que tem como principal afluente a Ribeira do Alhêda, que atravessa a Vila. A Vila, propriamente dita, é banhada por dois rios: o Dueça e o Alhêda. O primeiro nasce na freguesia da Cumieira, no vizinho concelho de Penela, e entra no concelho de Miranda por um vale estreito, perto da povoação da Retorta até que desagua no Rio Ceira, sensivelmente entre as povoações de Ceira e Vendas da Serra.

A Ribeira do Alhêda, que é afluente do Dueça e que se distingue por influenciar maior área urbana, atravessa toda a Vila. Tem a sua origem em dois cursos de água que drenam a Cordilheira Central imediatamente adjacente – a Ribeira de Espinho e o Ribeiro da Senhora da Piedade.

O rio Ceira entra próximo do Cabeço das Fragas no limite do nosso concelho com o da Lousã e sai junto da povoação da Foz do Mosteiro no limite do nosso concelho com o de Coimbra.

A ribeira do Padrão entra no concelho no Bairro Novo e desagua na ribeira do Alhêda; a ribeira do Espinho nasce na serra da Lousã e desagua no Alhêda, tal como a da Sra. da Piedade; a ribeira das Cerejeiras nasce no vizinho concelho de Penela e desagua no Dueça; a de Fervenças nasce próximo da localidade de Chão de Lamas e desagua no Dueça; a de Urzelhe nasce em Casais de S. Clemente e desagua no Dueça; a da Trémoa nasce na serra de Semide, próximo do Senhor da Serra e desagua no rio Dueça. As ribeiras de Vale, Donas e Tapada nascem na serra de Semide e desaguam no rio Ceira.

A Região Centro de Portugal apresenta um clima temperado, na transição entre o temperado atlântico e o temperado mediterrânico. No entanto, há áreas, embora bastante difíceis de delimitar, que apresentam características climáticas diferentes devido a determinados factores tais como sejam a altitude, a disposição do relevo e a sua proximidade relativamente ao mar.

Por sua vez, o posicionamento continental determina também os extremos térmicos, consequência do afastamento relativamente ao oceano Atlântico, grande elemento regulador da temperatura.

O clima no concelho de Miranda do Corvo é nitidamente de características mediterrâneas com duas estações bem definidas: um Verão quente e com ausência quase total de precipitação; e um Inverno com bastante precipitação e temperaturas suaves.

Este clima está directamente relacionado com o coberto vegetal que ocupa os terrenos da paisagem concelhia e que se descreverá mais adiante.

A distância em relação ao oceano Atlântico é ainda responsável por uma grande secura do ar e, como tal, o baixo teor de humidade determina o rápido aquecimento ou arrefecimento do ar, originando amplitudes térmicas significativas. É de realçar que neste concelho as temperaturas máximas no Verão chegam a ultrapassar os 40ºC.

A influência do Anticiclone dos Açores, durante o Verão, e a passagem de perturbações frontais, no Inverno, contribuem para as menores e maiores precipitações, respectivamente, e são responsáveis pelo diferente comportamento da precipitação entre o Inverno e o Verão. Quanto à humidade relativa, verifica-se uma correlação positiva entre o grau de saturação do ar e a pluviometria, o que implica que os meses de Novembro a Março, os mais pluviosos, apresentem os valores mais significativos de humidade relativa.

Ao longo dos últimos séculos foram muitos os factores e condicionantes que levaram a uma alteração ainda bastante profunda da flora, não só ao nível do concelho mas também aos níveis regional e nacional.

As várias invasões sofridas na Península Ibérica, de um modo ou de outro e consoante as necessidades de cada povo (bens de primeira necessidade, interesse bélico, ou outros), provocaram um aumento do consumo e consequente destruição de uma parte da floresta autóctone local, constituída essencialmente por Quercíneas. Esta situação foi agravada pela necessidade de expansão de algumas zonas agrícolas no concelho.

As espécies florestais que se encontram no concelho são essencialmente grandes manchas de pinheiro bravo (Pinus pinaster) e eucaliptos (Eucalyptus globulus labill), em povoamentos adultos e de constituição pura, sendo possível notar ainda em vários núcleos a regeneração natural de várias espécies, designadamente os Carvalhos: Carvalho Roble (Quercus robur), Carvalho Negral (Quercus pyrenaica), Castanheiros (Castanea sativa), Medronheiros (Arbutus unedo), Sobreiros (Quercus suber) e Loureiro (Laurus nobilis).

Os povoamentos mistos ocupam grandes áreas, nomeadamente de pinheiro bravo e sobreiro, pinheiro bravo e carvalho roble, pinheiro bravo e «cedro» do Buçaco (Cupressus lusitanica) e cerejeira brava (Prunus avium).

Os povoamentos de pseudotsuga (Pseudotsuga menziesii) com grande porte constituem alamedas ou encontram-se juntamente com «cedro» do Buçaco em parques de merendas ou dispostos em vários núcleos de vegetação nas zonas mais altas da Serra. Também aqui o pinheiro-silvestre (Pinus silvestris) se adapta melhor do que o pinheiro bravo.

Ao longo das linhas de água é possível distinguir uma forte concentração de cultura arvense de regadio bem como de espécies ripícolas, destacando-se os Salgueiros (Salix sp.), Choupos (Populus sp.) e Amieiros (Alnus sp.).

Actualmente verifica-se a existência de grandes manchas de eucaliptos, especialmente em áreas onde se verificaram incêndios florestais na última década. Nas áreas onde afloram os granitos de Vila Nova são visíveis amplos espaços com culturas arvenses de regadio, o que destaca estes elementos na paisagem serrana. Nas zonas mais elevadas da serra encontram-se amplas áreas incultas onde predomina uma cultura subarbustiva.

O Sítio da Serra da Lousã engloba uma parcela de território concelhio, nomeadamente algumas ribeiras. Estas linhas de água, instaladas nas vertentes, constituem os habitats mais bem conservados e assumem grande importância, quer para certas espécies faunísticas quer para a flora ripícola característica que aí se encontra, sendo de destacar as comunidades de salgueiros, bétulas, castanheiros e carvalhos roble e negral.

No que diz respeito ao estrato arbustivo e herbáceo, é enorme a diversidade das espécies arbustivas e herbáceas espontâneas, desde as aromáticas, de carácter medicinal, de interesse apícola para a produção de mel.

São de salientar, entre as inúmeras espécies existentes no concelho, a gilbardeira (Ruscus aculeatus), o pilriteiro (Crataegus monogina), as estevas (Cistus ladanifer), os sargaços (Cistus salvifolius), a carqueja (Chamaespartium tridentatum), as urzes (Erica spp.), o funcho (Foeniculum vulgare), a torga (Calluna vulgaris), o rosmaninho (Lavandula stoechas), o tojo (Ulex europaeus e Ulex minor), o trovisco (Daphne gnidium), o cardo (Cynara spp.), a giesta (Cytisus striatus), a giesta brava (Cytisus scoparius), a hera (Hedera helix), as candeias (Arisarum vulgare), as gramíneas (Agrostis spp.), entre outros.

Em termos da fauna, Miranda do Corvo, um pouco à semelhança dos concelhos vizinhos, tem vindo a sofrer algumas alterações ao longo dos tempos no que diz respeito a determinadas espécies selvagens.

Desde que a presença do Homem se fez sentir, que as alterações ao nível da fauna, e também da flora como foi possível verificar, se tornaram bastante significativas. Estas variações deveram-se essencialmente ao excesso de caça, às alterações no habitat, às incompatibilidades com a presença e actividade humana, à alteração da flora original, a fenómenos climáticos e geológicos, não restando qualquer dúvida de que o principal agente responsável pelo desaparecimento local e a introdução de algumas espécies foi o Homem.

É de referir que inicialmente a caça, tida então como meio de sobrevivência, constituía um factor de ameaça relativamente fraco perante a grande maioria das espécies. No entanto, e em contrapartida, com o evoluir da tecnologia algumas espécies, cujos fenómenos de selecção natural não lhes permitiram compatibilidades com o Homem e a sua actividade, acabaram por não conseguir fazer face à procura que tinham, encontram-se gravemente ameaçadas.

Esta caracterização teve como base a observação directa dos animais ou foi baseada em índices de presença, nomeadamente nos seus excrementos, marcas deixadas na vegetação e no solo.

No concelho verifica-se a existência de um potencial em espécies cinegéticas, sendo de salientar a Perdiz Comum (Alectoris rufa), o Corço (Capreolus capreolus), o Veado (Cervus elaphus), o Pombo Torcaz (Columba palumbus), a Lebre (Lepus capenses), o Coelho Bravo (Oryctolagus cuniculus), a Rola Comum (Streptopelia turtur), o Javali (Sus scrofa), o Tordo Ruivo (Tardus iliacus) e o Tordo Comum (Tardus philomelus).

Como espécies não cinegéticas, em termos de aves, sobressaem o Falcão Peregrino (Falco peregrinus), o Milhafre Preto (Milvus migrans), o Melro Preto (Tardus merula), o Pintassilgo (Carduelis carduelis), o Corvo (Corvus corvax), o Cuco Canoro (Cuculus canorus), o Pisco de Peito Ruivo (Erithacus rubecula), o Gaio Comum (Garrulus glandarius), o Mocho Galego (Athene noctua), o Pardal Comum (Passer domesticus), a Coruja do Mato (Strix aluco), a Coruja das Torres (Tyto alba), a Carriça (Troglodytes troglotytes), e a Poupa (Upupa epops).

As restantes espécies não cinegéticas que habitam o concelho são o Ouriço Cacheiro (Erinaceus europaeus), a Doninha (Mustela nivalis), o Rato do Campo (Apodemus silvaticus), o Rato Comum (Rattus norvegicus), o Texugo (Meles meles) e a Raposa (Vulpes vulpes).

Devido ao modo de vida de certos espécimes, a sua observação, em alguns casos, é bastante difícil, existindo decerto mais espécies do que as referidas. Incluem-se importantes áreas para a conservação da Salamandra Lusitânica (Chioglossa lusitanica), o Lagarto-de-Água (Lacerta schreiberi) e para o Ruivaco (Rutilis macrolepidotus).

Têm como habitat, os invertebrados Euphydryas aurinia e Euplagia quadripunctaria, que são duas espécies de lindas borboletas.

Habitats característicos da zona:

Charcos temporários mediterrânicos;

Cursos de água dos pisos basal a montano com vegetação da Ranunculion fluitantis e da Callitricho-batrachion;

Charnecas húmidas atlânticas temperadas de Erica ciliaris e Erica tetralix;

Formações herbáceas de Nardus, ricas em espécies, em substratos siliciosos das zonas montanas (e das zonas submontanas da Europa Continental);

Florestas aluviais de Alnus glutinosa e Fraxinus excelsior (Alno-padion, alnion incanae, salicion albae);

Carvalhais galaico-portugueses de Quercus robur e Quercus pyrenaica;

Florestas de castanheiros (Castanea sativa).

Estes são os grupos de espécies com maior interesse dentro do concelho e cujos factores de ameaça se devem essencialmente a uma falta de sensibilização por parte do Homem, principalmente no que diz respeito à destruição e alteração dos seus habitats, a práticas menos correctas na captura de algumas espécies e aos fogos florestais, normalmente de origem antrópica. Para fazer face a estas situações torna-se necessário e fundamental pôr em prática algumas medidas de conservação que tornem possível a manutenção e continuidade destas espécies.

Enquadramento histórico

A origem do nome da vila é latina: advém de mirandus - atalaia ou miradouro -, correspondente à primitiva função do cabeço onde foi construído o castelo e onde hoje se vê a igreja matriz. Chamou-se no início do séc. XVI Miranda dapar de Coimbra e ainda dapar de Podentes, e só no 3º quartel desse século se começou a chamar do Corvo, povoação próxima, ao tempo muito importante por se localizar na estrada real das Beiras que a fazia ser centro de estalagens e mudas de transporte. Há também quem afirme que à ribeira do Alhêda se chamava antigamente rio Corvo.

Dos tempos pré-históricos não são conhecidos vestígios relevantes na área do município. Romanos, bárbaros e árabes deixaram algumas marcas nas várias manifestações do quotidiano: agricultura, indústria e até toponímia. Semide aparenta um genitivo e alguns autores consideram-no de origem arábica, significando a flor da farinha. Estudos linguísticos apontam para que, igualmente, Segade, aldeia da freguesia de Semide, seja de origem germânica, genitivo de um nome pessoal Sagatu(s) e indicativo da existência pré-nacional de uma sagati «villa», ou semelhante propriedade rústica de um individuo com aquele nome (Cfr. Melo, 1992).

Houve núcleos de povoação dispersos conforme a qualidade e fertilidade dos terrenos para agricultura ou adaptação a indústrias rudimentares. Entre o Corvo e Miranda, afirma-se terem aparecido alicerces de cantaria, o que atesta ter ali existido povoamento. A verdade é que nada de concreto é conhecido. Dos vestígios antigos do concelho de Miranda, em tempos anteriores à Fundação, ressalva-se para o período bárbaro, o “tesouro de Chão de Lamas” e um “capitel visigótico”.

O capitel servia de pia na capela de Santa Catarina, no lugar do Corvo, encontrando-se agora no Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra. Trata-se de um objecto de mármore com decoração vegetal. Na parte superior, sobre a esquerda, foi cavado um buraco, tendo em vista servir de pia. O capitel não é, seguramente, de origem mirandense, apresentando-se como possibilidades a sua vinda de Coimbra ou Conímbriga.

Quanto ao tesouro proto-histórico de Chão de Lamas, está depositado no Museu Arqueológico Nacional de Madrid na chamada “Sala del Tesoro”, desde o ano de 1922. Trata-se de um conjunto de peças de prata lavrada e fundida. O Estado espanhol comprou, para o dito museu, essas valiosas peças que o governo português abandonou por falta de dinheiro.

São seis os objectos que constituem o tesouro: um colar completo de prata lavrada e repuxada, cujas extremidades simulam cabeças de serpente; um fragmento de outro; dois peitorais, um de prata batida, outra fundida; dois vasos de boca larga, lavrados com ornamentação de cordões à volta do gargalo e folhas largas estilizadas no bojo e, por fim, um umbigo de escudo de guerra, ou seja, o seu ornamento central com ornatos de ouro ou de prata muito dourada. A obra pode ser enquadrada na arte da ourivesaria proto-histórica peninsular.

A importância do tesouro deve-se quer ao seu valor real, quer ao problema da origem dos artefactos, quer ainda da espécie de civilização do local de onde provém. Algumas das peças parecem não ser contemporâneas, sendo provável a proveniência do tesouro de qualquer núcleo de população vizinho de Miranda. A beleza e perfeição das peças acusam uma cultura adiantada, talvez datável do séc. I a.C., como terá adiantado o arqueólogo Cabré y Aguiló.

Com o castelo aparece o povoado que com o tempo e a influência, relacionada com a defesa militar, seria o centro que ligaria com Penela a sul, e se estenderia para nascente até Arouca e quase à margem esquerda do Alva, exercendo na região certa hegemonia que se foi mantendo. No ano de 1116, segundo o “Crónicon dos Godos”, o castelo de Miranda foi tomado pelos sarracenos, tendo havido muitas vítimas e sendo levados para o cativeiro um elevado número de habitantes, fruto do avanço muçulmano na linha fronteiriça do Mondego.

Vinte anos depois – 19 de Novembro de 1136 – os habitantes de Miranda recebiam foral de D. Afonso Henriques, indirectamente nas pessoas do donatário Uzberto e de sua esposa Marinha. O foral foi depois confirmado por D. Afonso II. O concelho abrangia uma vasta área que ia quase do rio Ceira, perto de Coimbra, até à ribeira de Alje, para lá da serra de Vila Nova, compreendendo aproximadamente as actuais freguesias de Miranda, Lamas, Vila Nova e a perdida Campelo, agora pertencente a Figueiró dos Vinhos.

O Foral antigo de D. Afonso Henriques, concedido em 1136, faz menção a bois, cavalos, coelhos, veados, ursos e javalis e ao mel, produto derivado das abelhas, sem esquecer o pão e o vinho produtos de origem vegetal.

O Foral novo de Dom Manuel I, concedido em 1513 ou em 1514 nos produtos de origem animal faz menção a: boi, carneiro, cordeiro e porco; pescado e marisco, e a leite, manteiga, mel, ovos, queijadas e queijo produtos derivados dos animais. Nos produtos de origem vegetal anota: alhos, ameixas, amêndoas, avelãs, azeite, biscoito, castanhas, cebolas, centeio, cevada, erva, esparto, farelos, farinha, fruta seca e verde, funcho, hortaliça, legumes, lentilhas, linhaça, linho, melões, milho, painço, mostarda, pinhões e nozes.

Se é grande a diferença de produtos mencionados no Foral novo em relação ao Foral velho, não deixa de ser curioso o facto de nenhum deles referir a cabra que, posteriormente se transformou num animal de referência neste concelho e, em todas as Aldeias do Xisto, ao invés, a referência a marisco diz-nos ser possível transportar-se em condições para poder ser consumido, sem esquecer a distância que no caso desta localidade era relativamente curta, em relação ao mar.

O pelourinho, que hoje se guarda nos Paços do Concelho, pertencente ao 1º quartel do séc. XVI, é certamente contemporâneo do foral de D. Manuel, datado de 1513 ou 1514. Parece haver alguma contradição na composição deste monumento: a coluna de secção poligonal foi feita por artista manuelino; o capitel de quatro faces rectangulares parece ser já de feitura renascentista. Compõe-se de coluna oitavada, anelada ao centro e nas extremidades, tendo a pinha em forma paralelepipédica.

As faces da pinha são ornadas de uma esfera armilar, simbolizando o rei D. Manuel, reformador do antigo foral de Afonso Henriques; de uma Cruz de Cristo, uma projecção possível da influência material das Descobertas; do escudo real, uma concessão do município à crescente preponderância do poder central; e de um busto feminino, que deu origem ao selo municipal e ao brasão, encostado a um portal de volta perfeita, bastante mutilado mas onde ainda são perceptíveis o arranjo dos cabelos e o vestuário. Esta figura deu azo a uma enraizada lenda.

O pelourinho de Miranda do Corvo encontra-se presentemente instalado no átrio do edifício dos Paços do Concelho. É um exemplar curioso, de datação mais complexa, mas quase seguramente atribuível ao primeiro quartel do século XVI, após a outorga de Foral Novo à vila por D. Manuel, em 1514. Erguia-se originalmente junto à antiga Casa da Câmara, actual Feira da Sardinha. É talhado em pedra de ançã, e consta de base, coluna, capitel e remate, sem soco nem grimpa. A base é de planta quadrada com arestas superiores chanfradas, e nela assenta uma coluna de fuste oitavado, de faces lisas, constituído por uma peça única cingida por vários aneis: dois rematam os extremos do fuste, na base e no topo, outros dois sucedem-se a cerca de quinze centímetros dos primeiros, e um ultimo cinge a coluna a meio da altura. Sobre esta fica o capitel, lavrado com singela folhagem estilizada nos ângulos, e rematado por ábaco quadrado. O original remate é constituído por um paralelipípedo ao alto, lavrado nas quatro faces, com as armas reais (escudo de Portugal coroado), a esfera armilar, emblema pessoal do Venturoso, a cruz da Ordem de Cristo, e um busto humano relevado enquadrado por uma janela rasgada em arco redondo sobre colunelos lisos.

Este último bloco é obra de concepção e tratamento renascentista, increvendo-se a sua conjugação com a coluna tardo-gótica na habitual tipologia manuelina. O busto, com cabelo por baixo das orelhas e pontas reviradas, tem sido associado a uma lenda local, que afirma tratar-se de uma donzela enamorada por um cavaleiro inimigo, contemplando sem esperança o horizonte, desde a sua portada. O busto, que na verdade parece ser masculino, acabou por figurar no selo e no escudo das armas do concelho. O pelourinho é o símbolo da autonomia concelhia, era local de aplicação de justiça a quem não cumpria as disposições foraleiras, excepto a pena de morte. Essa seria aplicada na forca, fora da vila, possivelmente no local que ficou com o topónimo de Monte da Forca, perto do Montoiro.

Para termos uma ideia da população residente na época medieval temos que nos socorrer de meios de informação indirecta como seja o “Rol dos Besteiros do Conto”, uma espécie de levantamento dos efectivos militares por concelho. Assim, em fins do séc. XIII, Miranda apresenta quatro besteiros. O seu número era proporcional às forças militares de cada concelho e estas à sua população e riqueza. Em inícios do séc. XV, baseando-nos ainda no mesmo Rol, Miranda apresenta oito elementos, tal como a Lousã, o que significa que a população era alguma e teria até aumentado. Já o censo de 1527 acusa para o município de Miranda, 268 vizinhos assim distribuídos: Miranda – 169; Lamas – 53; Campelo – 46. Se multiplicarmos este valor pela taxa aceite para cálculo (3,6) chegaremos a um número aproximado de 965 habitantes.

Após o terramoto de 1755, o Marquês de Pombal manda fazer um inquérito por todo o reino e que foi distribuído às freguesias em 1756. As respostas encontram-se na Torre do Tombo no arquivo chamado “Do Ministério do Reino”. A população da freguesia de Miranda somava nesse ano 4067 almas; a de Lamas era composta por 228 fogos, o que perfazia cerca de 800 almas. A freguesia de Campelo apresenta para o ano de 1758, 81 pessoas a viver em 27 fogos.

No início do séc. XVIII, o Pe. Carvalho da Costa afirmava que o concelho tinha apenas mais duas freguesias: “a de Campello, & a do Espirito Santo do lugar de Lamas”. Semide era na altura um concelho autónomo. Rio de Vide pertencia à Lousã. Actualmente ele é constituído por cinco freguesias e respectivos patronos: a do Salvador, na vila, que é a matriz; a do Espirito Santo de Lamas, anexa desde a época medieval; a de S. João, de Vila Nova, retirada da de Miranda em 1905; a de Santiago de Rio de Vide, integrada no concelho em 1853; e a da Senhora da Assunção de Semide, integrada também naquele ano. Deixou de pertencer ao concelho a freguesia da Senhora da Graça, de Campelo, que passou para Figueiró dos Vinhos, na primeira metade do séc. XIX (Cfr. Pimenta, 1933-B)

Diversas famílias nobres foram senhores da vila como era usual na monarquia: encontrou-se na dos Coelhos até à subida do Mestre de Avis ao trono, em fins do séc. XIV. Passou depois aos Sousas de Arronches. Em 1611 foi criado o título de Conde de Miranda do Corvo, na pessoa de Henrique de Sousa Tavares, daquela Casa (Cfr. Enciclopédia…, v.18, pp. 352 e segs.). O terceiro conde teve o título de Marquês de Arronches, pelo qual ficaram a ser mais conhecidos. Por casamento passou este senhorio à casa dos duques de Lafões.

Em fins do séc. XVIII havia na vila a família dos Vasconcelos e Silva; a dos Arnáos – ou Arnaut – ; e a dos Silvas, cujo último rebento, Joaquim Vitorino da Silva, veio a ser, no regime constitucional, o Barão de Miranda do Corvo (Cfr. Pimenta, 1933-A).

O Prior era de apresentação da Coroa até D. João II. Este passou-a a seu filho D. Jorge, e por isso reverteu para a Casa de Aveiro, na qual andou até passar à de Arronches, senhorio da vila; os seus rendimentos eram muito avultados e deles saiu a pensão que, desde 1790, subsidiou o abade Correia da Serra nos seus estudos e viagens no estrangeiro. As freguesias que hoje constituem o concelho de Miranda pertenciam ao arcediago de Penela, um dos quatro em que se dividia o bispado de Coimbra desde o séc. XVI. Os arcediagos eram os encarregados de visitar as Dioceses.

A terceira invasão francesa trouxe novamente ao concelho algum protagonismo pela sua localização na linha estratégica de movimentação dos exércitos: parte do combate de Casal Novo, que decorreu na madrugada de 14 de Março de 1811, deu-se na freguesia de Lamas. As consequências da guerra foram grandes para a população pela carestia de géneros que sobreveio, pelos estragos materiais – Ney mandou incendiar a vila! - e pela grande epidemia que assolou as freguesias durante os meses seguintes.

Os homens de Napoleão estiveram no país desde fins de 1807 até Abril de 1811. Quando o exército francês, comandado por Massena, retirava das linhas de Torres Vedras para Norte viu-se obrigado, em vez de transpor o Mondego, a obliquar para a Beira pela estrada que ia de Miranda do Corvo à Mucela. Na manhã daquele dia 14 de Março de 1811, as posições avançadas do exército aliado encontraram a divisão de Loison perto de Casal Novo, a leste de Condeixa; começou aqui a acção que alguns espíritos da época chamaram «das posições» devido ao rigor e grande senso táctico com que Ney, comandante da rectaguarda conseguiu, pela ocupação de certas linhas sucessivas, retardar durante o dia o avanço inimigo até ao alto de Vila Seca e Chão de Lamas. Porém Wellesley, comandante do exército anglo-luso, ameaçando as alas e comunicações do adversário, obrigou na noite de 14 para 15 a retirada deste para a margem direita do rio Ceira. É um relato delicioso que se pode ler em “A Campanha de Massena em Portugal” de Belisário Pimenta.

Durante as invasões a população de Miranda refugiou-se em Coimbra ou, sobretudo, pelas serras. A retirada de Massena foi marcada por incêndios, roubos e morte de cabeças de gado. Foram contabilizadas cerca de 200 vítimas – 149 homens e 51 mulheres. Os foragidos, em especial os que se haviam refugiado em Coimbra, regressaram com um «contagio» que deixou sinais; o inquinamento das águas, devido ao apressado enterramento dos animais mortos por toda a região, também deve ter contribuído para o mal. A partir de Abril os registos recomeçam a mostrar grande mortalidade em Lamas, depois nos Moinhos e depois por toda a freguesia de Miranda. Entre 15 de Março e 31 de Julho de 1811, a mortandade foi de mais 566 óbitos do que quando comparada com anos anteriores, gerando muitas crianças abandonadas.

A vila é banhada por dois rios: o Dueça e o Alhêda. O primeiro nasce na freguesia da Cumieira, no vizinho concelho de Penela e entra no concelho por um vale estreito, próximo da povoação da Retorta; segue em curvas, por um vale apertado até Albarrol, onde se desafoga um pouco para de novo entrar, abaixo de Godinhela, noutra garganta até quase às proximidades da vila; passa então a poente da vila, a algumas centenas de metros por detrás do Cristo-Rei, dando ideia quase de uma península, onde recebe as águas da ribeira do Alhêda. Novamente entranha-se por um vale de curvas apertadas, nalguns pontos de encostas ásperas, noutros com ligeiros respiradouros, até que desagua no Ceira, sensivelmente entre os lugares de Ceira e Vendas da Serra.

A ribeira do Alhêda atravessa a vila e no séc. XIX havia quem considerasse que a dividia em dois bairros: o dos católicos na margem direita e o dos mouros, na esquerda, designação que provinha do facto da margem direita estar defendida das enchentes e a da esquerda não. Tudo isto antes da regularização do caudal, levado a cabo no século passado.

São normalmente referidas na documentação duas pontes principais: a Ponte do Corvo, sobre o Alhêda, acima referido; e a “velha ponte do Dueça por detraz do castelo”. Esta ponte foi feita em 1666, de alvenaria, depois de porfiadas diligências e, já no séc. XVIII, ainda era chamada “Ponte Nova”. Foi substituída pela actual quando se construiu a Estrada Distrital n.º 108 (Cfr. Pimenta, 1933-A).

Evolução urbanística da vila

É possível perspectivar na vila momentos evolutivos da sua expansão urbanística. O primeiro casario deve ter surgido na proximidade do castelo, acompanhando a descida orográfica do monte dominante, evoluindo preferencialmente no sentido Este, o mais protegido por estar rodeado pelas serras – Espinho, Lousã – e pelo extenso vale de campos férteis, encontrando-se assim abrigado das intempéries. Isto é perceptível se observarmos atentamente uma litografia existente de 1843, em que a matriz domina lá do alto, contraposta na parte baixa ao velho edifício da Câmara, demolido no início do séc. XX, como veremos adiante.

Assim com apoio na documentação escrita e fotográfica, principalmente para o séc. XX, e na diversa cartografia existente, podemos afirmar com alguma certeza que, até ao início de novecentos, o casario se deveria amontoar num perímetro que começava abaixo da Igreja Matriz, descendo a Ladeira do Calvário e seguindo pela Rua do Cruzeiro, na continuação da antiga Rua dos Linhares, onde se situa o Largo Manuel Pereira Batalhão. O traçado do perímetro mudava na direcção sudeste, pela actual Rua D. Afonso Henriques desviando novamente o seu sentido para a actual praça José Falcão, antigo Largo do Pinheiro, conduzindo daí até ao Largo Tenente Romãozinho e daqui novamente até bem próximo da matriz, onde encerramos o perímetro. Este era esventrado por duas ruas que, começando no mesmo ponto – Largo Manuel Pereira Batalhão, junto à capela da Boa Morte –, seguem orientações distintas, desembocando a primeira - a Rua dos Combatentes - no Largo Tenente Romãozinho; e a segunda, o conjunto da Rua da Sra. da Conceição mais Rua de S. Mateus, conduzindo à escadaria que leva à Matriz. Entre estas encontramos típicas ruelas mais estreitas de cariz medieval, interligando-as; uma delas tem o usual nome de “Quebra Costas”.

Um outro foco habitacional contemporâneo poderá estar na ligação entre o Largo Tenente Romãozinho e a antiga capela de S. Sebastião, que apesar de modernizada sabemos ser de existência antiga, formando a Rua da Filarmónica – onde se situava o Paço dos Melos, ou dos Arnáos - e a Rua Dr. Rosa Falcão. Também a zona conhecida como Carvalhal, que se desenvolveu lateralmente à capela da Boa Morte, nos parece ser um foco de evolução a ter em conta. Existe sempre, logicamente, algum casario isolado.

Em meados do século XX, a construção evolui essencialmente no sentido nordeste, na expansão da rua do Cruzeiro, gerando a actual Avenida Arménio da Costa Simões.

A expansão das últimas décadas fez com que, a sudeste, a continuação da rua D. Afonso Henriques acabasse por encontrar a rua Dr. Rosa Falcão. Além disso, lugares limítrofes que há cem anos atrás estavam isolados – Bujos, Carapinhal, Montoiro, Corvo – foram “ligados” à vila pela evolução urbanística.

Desta forma, dum ponto de vista da evolução urbana, identificaram-se três períodos correspondentes a quatro assentamentos urbanos de características distintas:

o primeiro correspondeu à mancha coesa (hoje centro histórico) que se desenvolveu a partir do cabeço, onde outrora existiu o castelo, na direcção Este;

o segundo corresponde ao desenvolvimento linear em torno da estação dos caminhos de ferro, onde se encontra actualmente o largo da Cruz Branca; nos anos 80 deu-se uma expansão significativa da área urbana, resultante da abertura de novas vias: Avenida Padre Américo, Rua 25 de Abril, Avenida Mota Pinto e dois significativos bairros municipais, designadamente o Bairro Sá Carneiro e a Quinta do Viso;

o terceiro, nos últimos dez anos, corresponde à urbanização desordenada das quintas periféricas, apoiada nas principais estradas existentes e que acabaram por constituir expansões naturais da vila.

Roteiro pela arquitectura religiosa

a) A Igreja Matriz tem por patrono O Salvador. D. Henrique e D. Teresa doaram a igreja à Sé de Coimbra, indirectamente, isto é, D. Teresa e o bispo D. Gonçalo autorizaram o presbítero Árias a fundar a igreja, como fez, parecendo deduzir-se que foi em época anterior à incursão moura de 1116, tendo sido este que a doou à Sé, em 1138. Todavia o padroado, até à criação da Casa de Aveiro por D. João II era real, passando depois para esta Casa; foi ambicionado no séc. XVIII pelo senhorio da vila, vindo a regressar ao padroado real, em virtude da extinção daquela casa, devido à execução dos Távoras e ao fim da Casa de Aveiro.

Em relação a construções anteriores à actual, Belisário Pimenta encontrou documentos comprovativos de uma construção nos finais do séc. XIV, sendo seu mestre, o construtor João Fernandes. O actual edifício provém da construção do último quartel do séc. XVIII, substituindo a velha igreja reformulada do séc. XIV, por esta se ter arruinado completamente a ponto de ser demolida em 1785 (Cfr. Pimenta, 1931). A data de 1786 na porta principal corresponde ao início dos trabalhos. A 2 de Fevereiro de 1789 mandava o Bispo continuá-la, pois que, estando bastante adiantada, parara por «desinteligências» a seguir ao falecimento de um pároco, certamente o iniciador, Manuel de São Luís Queiróz.

É um templo vasto e bem proporcionado. A frontaria segue o esquema neoclássico da igreja distrital usual à época: duas pilastras em cada lado, elevando-se a parte média; porta de cimalha e verga curvas, encimada pela janela do coro. O interior é de uma só nave, muito ampla, possuindo retábulos do rococó coimbrão. A cabeceira contém o retábulo principal e os colaterais datados do fim de setecentos, de quatro colunas aquele, e de duas, estes. No primeiro foi colocado um sacrário do séc. XVII, com baixos relevos nas faces, de estilo regular, representando o Padre Eterno tendo nos braços Cristo Morto, ladeado por S. Domingos e S. Francisco. No camarim encontramos uma tela com a Transfiguração, inspirada em modelo clássico rafaelita. No colateral da esquerda encontramos uma outra tela de S. Miguel e as almas, de nível popular; no da direita, uma escultura da época setecentista final, de Nossa Senhora do Rosário, policroma e graciosa. Nas paredes rasgam-se dois arcos destinados a retábulos. O do lado esquerdo foi ampliado em capela, havendo aí sido colocado um retábulo de madeira, do terceiro quartel do séc. XVII, de quatro colunas recamadas de enrolamentos de acantos, mostrando no frontão as armas franciscanas, que poderão indicar a sua proveniência. A este retábulo pertence o sacrário do altar-mor. Ostenta-se aí um grande crucifixo, do séc. XVII. O retábulo do arco fronteiro é formado de restos de talhas de diferentes épocas. O púlpito é do fim de setecentos, lendo-se-lhe na sanca PORTA CAELLI. A abóbada contém alguma pintura parietal onde se destaca a representação do Tetramorfe – à esquerda, S. Lucas e S. João; à direita, S. Mateus e S. Marcos.

A torre dos sinos levanta-se à esquerda da igreja, independente e num nível um pouco superior. Trata-se do aproveitamento da base de uma das torres de fortificação que formavam o castelo. Exteriormente está revestida de argamassa; no interior é incaracterística (Cfr. Gonçalves, 1952). Tem duas sineiras voltadas para a vila e uma outra no alçado direito. A abertura do alçado esquerdo foi tapada, não existindo nenhuma na face posterior. Para alojarem o relógio, levantaram-na acima do corpo dos sinos e deram-lhe novo remate. Cravaram sobre a porta de baixo uma lápide pertencente a uma capela da igreja antiga. Pertence ao ano de 1553. Transcrevemo-la segundo a leitura do historiador Belisário Pimenta: (E)STA CAP(E)LA E DE S(AN)TO ANT(ONI)O E / FOY F(EI)C(T)A CO(M) (E)SMOLAS NO A / NO DE ibliij AN(OS) EM O Q(UA)L ANO / SE COMECOU SUA CO(N)FRARY(A) / E O P(R)IM(EIR)O MORDOMO FOY / (B)RAZ DO COUTO ESCUDE(IR)O Q(UE) / (M)A(N)DOU FAZER...

O sino maior ostenta uma inscrição dizendo que foi feito sendo pároco o padre Mourão. O segundo, de 1901, foi de fundição de António Alves Ferreira, com oficina em Alvaiázere. Este templo, juntamente com a Capela da Senhora da Boa Morte, relaciona-se com a Festa dos Passos, de grande predilecção dos mirandenses.

b) A Capela do Calvário situa-se no morro do castelo, no lado oposto à Igreja, encontrando-se reformada e ampliada modernamente - 1899 na frontaria; 1932 no piso fronteiro. Conserva uma elegante porta antiga de duas pilastras e mísulas complementares a suportarem o frontão. Os batentes são almofadados em traçados curvos de muito boa categoria. Aquela e estes pertencem à segunda metade do séc. XVIII. No interior encontram-se seis telas de J. F. Alvarinha, datadas de 1880. Representam passos da Paixão e são, no entender de Nogueira Gonçalves, uma inábil cópia de pinturas do séc. XVI. Dos cruzeiros que faziam parte da Via Crucis só é antigo o que fica em frente da capela: possui coluna sobre degraus circulares, do tipo seiscentista, mas coroado de uma cruz trevada, de 1871.

Numa das entradas da vila há um outro cruzeiro do mesmo tipo daquele, que guarda parte dos velhos degraus, chamado «Cruz Branca» que dá nome ao aglomerado habitacional envolvente. Junto ao primeiro cruzeiro e à capela há ainda espalhadas campas do séc. XIX, assim como no adro da Igreja.

c) A Capela de Nossa Senhora da Boa Morte encontra-se isolada num adro na vila. Anteriormente terá lá existido a capela de S. Cristóvão, de que subsiste documentação provando a sua existência em 1576. Houve igualmente, à sua frente, um adro com um cruzeiro com o nome do mesmo santo. Lá se enterravam os que, sendo de fora da freguesia, nela pereciam, o que levou a que chamassem àquele adro “pátria dos peregrinos”. Estes dados foram retirados de um jornal semanário que se publicou na vizinha vila da Lousã chamado “Alma Nova” (Cfr. “Alma Nova”, ano 4º, nº 112 de 14 de Maio de 1925). Entre os anos de 1923 e 1926 Belisário Pimenta escreveu algumas crónicas históricas relativas à nossa vila naquele órgão. As paredes laterais do corpo acusam, pela cornija, reaproveitamentos de uma obra do séc. XVII.

Foi nesta capela que se instituiu, em 1732, a Irmandade de Nª. Sª. da Boa Morte, a requerimento de vários eclesiásticos e civis. Pelas suas dimensões era, nesta altura, a maior capela da vila e por este motivo, quando na igreja paroquial não era possível celebrar o culto, vinham temporariamente as funções paroquiais para S. Cristóvão. Assim em 1709, havendo a necessidade de levar a cabo obras na Matriz, as missas diziam-se em S. Cristóvão. Em 1767, pensou-se em construir uma nova igreja matriz, porque a que existia estava muito arruinada. Chegou a elaborar-se um projecto de alargamento da capela de S. Cristóvão, para a sua transformação em matriz, mas a ideia não foi, porém, avante.

Em 1785 quando se demoliu a velha igreja matriz, a capela de S. Cristóvão voltou a ter funções paroquiais, até se fazer a nova igreja matriz que actualmente existe. Estas razões da sua importância serviram até para que se retirasse do adro e das proximidades, a feira semanal que aí se fez até 1775: nesse ano a Câmara e os moradores forçaram para que fosse mudada para a praça sobranceira ao rio; e, entre as alegações, aparece a da «indecência considerável» (Cfr. “Alma Nova”) que o mercado representava para a celebração do culto na capela, especialmente nas primeiras quartas-feiras do mês, em que a afluência de gente e o burburinho correspondente se contrapunham à seriedade e compostura dos actos religiosos.

Depois de queimada pelos franceses, esteve sem arranjo até 1838, ano em que se fez novo compromisso com a irmandade, por ter ardido o anterior, e se pediu aprovação régia (Cfr. Pimenta, 1931). A construção actual pertence à segunda metade do séc. XVIII, altura em que muda de patrono.

O espaço contíguo à capela é curioso, acreditando alguns que os muros envolventes relembram, intencionalmente, uma barca. Tal facto poderá estar ligado à invocação actual da construção – a Boa Morte - relegando-nos para a travessia que é necessário fazer após a morte bastante retratada, por exemplo, no teatro vicentino (Auto da Barca do Inferno). A fachada é bem proporcionada, existindo pilastras nos cunhais, cimalha de cantaria que segue traçado mistilínio, porta e óculo quadrilobado, com molduras e formando uma só composição; duas janelas do coro, de aro moldurado, e abaixo, ao lado da porta, dois rótulos concheados. No interior existem três retábulos de gosto setecentista final: no principal, de quatro colunas reempregaram muitas talhas do princípio do século. Existem ainda esculturas de madeira do séc. XVIII: Senhora da Boa Morte à esquerda e S. João Baptista à direita, movido e gracioso; um S. Cristóvão de pedra do séc. XVII, no retábulo lateral direito, que foi o orago da mesma capela até ao último terço do séc. XVIII.

d) A capela de S. Sebastião é um imóvel que se situa na linha do arruamento da actual Rua Rosa Falcão, ladeado por habitações com as quais se confunde. A fachada principal, a única visível, apresenta uma entrada central e dois postigos laterais.

Apesar do aspecto que mantém, fruto de inúmeros restauros, cremos ser de existência antiga. Terá sido uma das primeiras construções do lado de lá do rio, provavelmente de proveniência medieval, estando a sua cabeceira perfeitamente orientada. Com o crescimento demográfico foram surgindo construções à sua volta.

O seu interior foi remodelado. Possui um retábulo modesto, feito de talhas do séc. XVI. Nela se encontram algumas esculturas religiosas das quais destacamos um S. Sebastião de pedra do séc. XVII e uma Senhora da Piedade, de barro, do séc. XVIII.

e) O Alto do Calvário é um morro onde se situam vários edifícios maioritariamente de cariz religioso como sejam: o monumento ao Cristo Rei, a capela do Calvário, a Igreja Matriz, uma Via-sacra, uma larga escadaria e arruamentos diversos para além da arborização envolvente.

O Calvário, também conhecido por Caramito, é um pequeno morro que em épocas passadas exerceu um papel relevante na defesa das populações locais, por meio do seu castelo. Encontra-se a poente e sobranceiro à vila, num ângulo de terreno existente entre os rios Alhêda e Dueça.

Em 1948, veio para Miranda o pároco Fernando dos Santos Coimbra que se apercebeu da beleza do local. Primeiramente o Pe. Coimbra começou por construir a residência paroquial no local actual, antigo repositório de lixos e silvas. Há quem afirme que o túnel conhecido como “Buraco” viria desembocar aqui. Acabada a residência pensou o pároco em aproveitar aquele local para algo aprazível e acolhedor. Pediu então a colaboração do Sr. Fausto Branco, da Fábrica da Igreja e do Sr. Mário Antunes, um emigrante endinheirado do Brasil. Procedeu-se ao levantamento topográfico do local e fez-se um projecto. Enquanto este era feito levaram-se a cabo vários arranjos como a construção de muros de suporte na actual via dos cedros, o desentulhamento da cisterna do castelo, tornado ossário de caveiras e esqueletos, a colocação dos ossos junto da torre, numa cova aberta para o efeito. Dentro do mesmo plano foi feita a terraplanagem do cume e a plantação de cedros, a abertura da escadaria, a preparação do largo em frente e a mudança do cruzeiro que centra esse largo. Esse cruzeiro estava levantado no começo da escadaria. Na preparação da futura construção do Monumento ao Cristo Rei, alargou-se o lado sul da Igreja e arborizou-se a parte poente, atrás da igreja com plátanos e outras árvores.

Decidiu-se, após reuniões com o Pe. Nunes Pereira e uma visita à Serra da Marofa em Figueira de Castelo Rodrigo, que Miranda iria ter um monumento ao Cristo-Rei e uma Via-sacra no seu Calvário. Estávamos na década de sessenta. O Pe. Nunes Pereira fez o desenho do pedestal, o Sr. Marques de Coimbra, encarregou-se da imagem e de contactar o empreiteiro, a Via-sacra ficou, também, a cargo do Pe. Nunes Pereira que a executaria nos moldes da que havia feito para a Marofa, tudo com a imprescindível ajuda financeira do Sr. Mário Antunes e do povo da vila. A pedra veio da Lousã e procedeu-se também por fim à iluminação do local. Em seguida delineou-se um arranjo do muro, abrindo carreiros e espalhando bancos e mesas. Por fim veio o asfaltamento do largo do Calvário, do adro da igreja e dos acessos (Cfr. Jornal “Mirante”, notas do Pe. Luciano).

Roteiro urbanístico pela arquitectura civil

a) O que resta do Castelo

Poderá parecer despropositado falar de um castelo que fisicamente já não existe e cuja importância estratégico-militar se terá perdido logo após as forças da Reconquista por aqui terem passado no séc. XII, as populações aqui se terem definitivamente fixado e o perigo muçulmano se ter desvanecido. Hoje, porém, e como afirma Paulo Pereira, tal acontece com outras fortificações antigas, a maior parte delas carece de função, ou seja, foram perdendo a sua utilidade pretérita.

O seu papel é essencialmente rememorativo. E este papel todos nós, quer sejamos mirandenses, quer sejamos amantes de castelos, podemos encontrar tanto nas fortificações que ainda orgulhosamente se mantêm de pé, como naqueles que por força da perda da sua função militar foram sendo alvo da marca do tempo, tal como aconteceu com este castelo de Miranda.

«Do cruzamento do vale do Dueça com a larga passagem ao longo da cordilheira, surgiu um ponto de apoio para a defesa de Coimbra, de que resultou a erecção de um castelo no cabeço que hoje domina a vila». Foi assim que Belisário Pimenta, militar e historiador coimbrão, iniciava a sua palestra em frente à igreja matriz no início dos anos 50 do século passado, munido de um pequeno aparelho de som, por ocasião de uma visita de individualidades vindas de Coimbra. A alocução seria depois sintetizada num pequeno opúsculo intitulado “Miranda do Corvo: a sua paisagem e um pouco da sua história” levado à estampa em Coimbra, em 1959, pela Sociedade de Defesa e Propaganda de Coimbra.

Do castelo de Miranda do Corvo apenas restam actualmente a base da actual torre sineira e uma velha cisterna. No início do séc. XX ainda era possível vislumbrar as cantarias quinhentistas daquela torre secundária que o tempo perpetuou. É de lamentar que nunca se tentasse, tal como muitas vezes propôs Belisário Pimenta, a verificação do perímetro das muralhas: ficava-se a saber a sua configuração e, possivelmente, a sua estrutura no que respeita ao perímetro, número e posicionamento de torres, incluindo a menagem e portas.

As obras de renovação do morro levadas a cabo na década de 50 do século passado tornaram irremediável esse projecto. O local estava votado ao abandono, sendo um repositório de lixo e silvas. Estas obras foram levadas a cabo pelo Pe. Fernando Coimbra com a ajuda do Sr. Fausto Branco, do Comendador Mário Antunes e contaram com o apoio do Monsenhor Nunes Pereira que levou os outros a inspirarem-se no Cristo-rei da serra da Marofa, em Figueira de Castelo Rodrigo, para o novo rearranjo urbanístico daquela área.

No início do séc. XII este morro seria, pois, uma fortificação elementar para aguentar, por este lado, a pressão muçulmana. Aproveitando os declives e aspereza do cabeço, formaria um conjunto com poucas torres, ligadas entre si por cortinas em que a madeira, como era de uso, entraria a par da pedra, na construção. Depois, com a reconstrução de 1136, as muralhas teriam outra traça e seriam de alvenaria sólida; e é natural que existissem torres a marcar os ângulos do perímetro. Se, isolada no meio do castelo, existiria uma torre de menagem, característica do castelo defensivo românico, é algo que não sabemos.

A porta principal de entrada seria, supostamente, ao cimo da calçada que sobe da vila, proveniente das escadas de S. Tiago; a igreja era então pequena, construída onde hoje está a capela-mor da actual, havendo assim espaço suficiente para uma pequena praça de armas e uma cisterna dentro do pequeno pátio de armas do castelo. O material usado na edificação seria o calcário, sobretudo nos cunhais, ao qual se poderia juntar algum xisto e outros materiais de menor qualidade aqui existentes. Nalgumas construções da parte velha da vila ainda são perceptíveis alguns silhares bem talhados que parecem apontar a sua proveniência.

O castelo de Miranda já existiria, pois, em data anterior à fundação da Nacionalidade, desempenhando com outros castelos do actual distrito, um importante papel na defesa de Coimbra. Como sabemos os castelos de Miranda, Soure, Montemor-o-Velho, Santa Eulália, Pombal, Germanelo, Penela e Arouce formavam uma linha avançada de fortificações que defendiam a importante praça de Coimbra pelos lados Este, Sul e Oeste.

A primeira referência que temos do castelo é a da tomada muçulmana em 1116. Neste ano, durante a regência de D. Teresa, perante a investida do exército muçulmano comandado por Ibn Taxfin, vali de Córdoba, o castelo foi a terra, a guarnição trucidada e a população local, como a da região, morta, escravizada ou dispersa pelas serras circundantes onde procuravam o seu sustento e onde agora procuraram o seu refúgio.

Vinte anos depois, pelo ano de 1136 o primeiro rei de Portugal, levantou neste cabeço, então de certo solitário, as novas muralhas do castelo, mais forte com certeza e de maior traçado que o anterior; e fazendo renascer o povoado, organizou politicamente a região concedendo-lhe foral naquele mesmo ano e, por consequência, meios de vida, de acção e desenvolvimento. O casario desenvolveu-se à sombra do castelo para o lado Este, mais protegido pelos ventos. É deste ano de 1136 que se pode contar a origem histórica da vila e do seu concelho. Perfaz pois este ano 870 anos.

Nas lutas depois travadas entre D. Sancho I e Afonso III, Conde de Bolonha, Miranda ficou na história como tendo apoiado aquele monarca. Cabia ao município, à época, contribuir com quatro besteiros para a força real, conforme indica Alexandre Herculano na sua “História de Portugal”. Não existia um exército permanente na Idade Média. Havia, isso sim, uma “tropa fandanga” como afirma João Gouveia Monteiro. Em caso de conflito, cada concelho contribuía com um número de homens proporcional às forças militares de cada concelho e estas à sua população e riqueza.

Elaborava-se um levantamento chamado “Rol dos Besteiros do Conto” para quantificar as forças militares possíveis de juntar em determinado momento, desde simples peões, que transformavam ferramentas de trabalho em armas de guerra; a manobradores da terrível besta que nestas terras da Ibéria foi sempre preferível ao arco, e cuja eficácia a levou a ser a única arma proibida pela Igreja…até hoje.

Constatamos assim, por aquele número, que Miranda era ainda povoação de certa importância, comparável por exemplo à vizinha vila da Lousã, nos fins do séc. XIII, mas obviamente sem o peso de Coimbra ou de Montemor. Em 1383, o alcaide mirandense João Afonso Telo, abriu ao rei castelhano as portas do castelo, tal como aconteceu noutras vilas. O medo terá falado mais alto.

A construção foi-se arruinando com o passar dos séculos. A última torre do castelo, levantado por D. Afonso Henriques e reformado pelos seus sucessores, desmorona-se a 7 de Maio de 1799; as pedras amontoadas eram cobiçadas pelo povo que as roubava para edificar as suas casas, do que resultou uma vigorosa postura camarária, lavrada no Livro de posturas da Câmara, impondo penas a quem fosse visto a carregar as pedras. No entanto, parte deste material será aproveitado em 1803 – agora já com autorização camarária, conforme atesta o Livro de accordãos de 1801-1805 - na reconstrução da ponte do Corvo, sobre o rio Alhêda.

Estas deliberações encontram-se igualmente transcritas na obra “Castelos Portugueses” de Jorge Larcher, um dos primeiros levantamentos de síntese sobre a castelologia medieval portuguesa, se não contarmos esse magnífico, e único na Europa, levantamento feito pelo escudeiro de D. Manuel, Duarte d’Armas no “Livro das Fortalezas” na centúria de quinhentos e que, infelizmente, não considerou a fortaleza mirandense, uma vez que o objectivo era sobretudo os castelos de fronteira com a Espanha, inimiga de sempre.

O morro actual, chamado Alto do Calvário, ou Caramito pelos mais velhos, no qual assenta a igreja matriz e a capela do Calvário, só mostra do castelo uma torre secundária que serve actualmente de sineira e um espaço subterrâneo – a cisterna. Esta encontra-se num ponto alto, de planta rectangular com cerca de 3 x 4 metros. Ainda são perceptíveis os arranques da abóbada de volta perfeita de cariz medieval que deve ter existido, embora esta se apresente muito desfeita. Posteriormente este espaço foi aproveitado para depósito de ossos, provenientes do cemitério.

O castelo de Miranda já não se eleva, pois, sobranceiro no alto desta península banhada pelo rio Alhêda, mas ao olharmos lá para cima podemos ainda imaginar o pequeno mas altivo castelo, onde no adarve a linda princesa saúda o valente e destemido cavaleiro gritando-lhe “Mira e Anda”. Alguém um dia assim pensou e imortalizou este pensamento deixando-o gravado numa das faces do nosso pelourinho, fazendo com que a recordação do castelo de Miranda se mantivesse para a eternidade.

b) As ruas e as casas antigas

Em Miranda do Corvo subsistem algumas casas centenárias pertencentes a famílias tradicionais, embora modificadas ou em ruínas. Na rua da Sra. da Conceição – provavelmente a mais antiga rua da vila -, entre a igreja da Sra. da Boa Morte e a Matriz, vê-se uma casa térrea e incaracterística, do séc. XIX, com um pequeno nicho e imagem daquela titular, que representa o Antigo Hospital de Nossa Senhora da Conceição.

Quer o Hospital da Sra. da Conceição, quer a albergaria foram fundados, documentalmente, no segundo quartel do séc. XVI em virtude do desenvolvimento que tiveram no reino, neste século, os serviços assistenciais, ou seja, uma certa oficialização da caridade. Estas duas instituições nasceram de iniciativa particular, embora com características religiosas, pois não há no concelho, nesta altura, nem mosteiro a que estivessem anexas nem mesmo Misericórdia. Tiveram como corpo directivo a Confraria leiga da Sra. do Rosário que não deveria, certamente, andar muito fora da influência da poderosa Casa de Arronches.

Quanto à albergaria, Miranda era atravessada por uma estrada que vinha da direcção de Chão de Lamas – onde cruzava com a estrada Coimbra-Podentes – e seguia para a Lousã, juntando-se na vizinha povoação do Corvo, com a estrada real que, vinda de Lisboa, atravessava o concelho desde a Sandoeira ao Padrão e seguia por Foz de Arouce para a Mucela e daqui para a Beira Alta. Miranda era pois ponto de passagem forçada da Estremadura para a Beira. Assim se justificava a instituição que tinha como principal finalidade dar albergue e sustento aos pobres para poderem continuar o seu caminho. Do Hospital subsistem mais elementos pois esses viajantes vinham muitas vezes doentes e o obituário da freguesia dá conta dos muitos que não resistiram, sendo depois enterrados no adro em frente à actual capela da Boa Morte.

Na frontaria da casa térrea está cravada uma lápide que comemora a instituição, pelo segundo quartel do séc. XVI, daquela casa beneficente. Lê-se nela, segundo Belisário Pimenta:

«Esta:casa:he do Espi(tal) (d)esta:Vila:de Mira(n)da a

:qual se fez p(ar)a os (com)frades: e home(n)s bo(n)s: dela

:da q(ua)l:foy:vedor:d(io)go arnao:escud(eir)o:e vassa

llo:e ouvidor: do Sr. Andre:de Sousa

:e(m) esta:sua:vila:de:miranda:e pode(n)

(tes)...:no anno de myll

...d(iog)o al(ve)z»

Na mesma rua, no sentido ascendente, uma casa modesta tem uma escada exterior dotada de pilaretes na rampa e no patamar, suportando o telhado. O imóvel, incluindo a escada, parece-nos ser do séc. XVII. Mais acima, do mesmo lado da rua e fazendo esquina encontra-se uma curiosa edificação datada de 1924, com alguns ressaibos de Arte Nova.

Nessa mesma vertente, com entrada pelo edifício atrás citado e na rua que leva à igreja, outra se destaca, conservando a imponente varanda, que se levanta em arcos simples, sendo dois na frente, aos quais correspondem em cima quatro vãos, separados por colunas toscanas e pilares angulares, aquelas e estes levantando-se em parapeito pleno. Este imóvel de certa imponência, foi a sede, durante largos anos, do prestigiado Clube Atlético Mirandense. Chamam-lhe a Casa do Jardim. A entrada faz-se por um portal que se encontra mencionado na obra do Pe. Nogueira Gonçalves, donde transcrevemos a seguinte passagem: “Na Rua da Ermida, vê-se ainda um portal, de friso, cornija, dominado de óculo quadrilobado, dum edifício já do séc. XVIII”. O óculo que encimava o referido portal já não é perceptível.

A “Casa do Jardim” situa-se, pois, junto ao último lanço de escadas da rua Quebra-costas e entre as gentes da vila é mais conhecida como a sede histórica do Clube Atlético Mirandense. A sua estrutura foi retirada ou encoberta aquando das obras a que essa casa foi sujeita e que foram levadas a cabo pelo pai do Sr. Lídio Brás, em meados do segundo quartel do século passado, das quais resultou a fisionomia que apresenta actualmente. Transpondo esse portal vamos encontrar a já referida “Casa do Jardim” citada igualmente no rol bibliográfico mencionado. Habitou esta casa Manuel Fernandes Cosme, avô dos senhores Alexandre e Arnaldo Cosme, figuras que gozavam fama de um particular sentido de humor. Foi aquele, uma figura de certa projecção local tendo desempenhado na vila alguns cargos importantes tais como o de Administrador do Concelho, Juiz de Paz e Juiz das Águas.

Na parte baixa da vila, na linha do castelo (Rua do Buraco), aonde havia – supostamente - um acesso àquele, encontra-se uma outra casa, de aspecto ruinoso, datável do séc. XVII, com aberturas de verga direitas e cornijas. No seu interior este imóvel apresenta numa das suas salas algumas pinturas a fresco conjugadas com medalhões em baixo relevo, formando, no seu todo, um conjunto interessante. A temática parece ser de âmbito militar, eventualmente até as invasões francesas. Uma outra divisão, que noutros tempos albergou um espaço comercial, apresenta também um tecto trabalhado a estuque que, apesar do mau estado, parece revelar alguma qualidade seguindo a mesma linha da outra sala já atrás referida, fazendo adivinhar ser obra do mesmo artista.

Meia ligada a esta, para a extremidade oposta, há outra casa igualmente em mau estado, de tempo aproximado. O “Buraco” é uma curiosa construção em túnel de cariz, parece-nos, medieval, mas de que desconhecemos a função.

Igualmente na baixa, na Rua da Filarmónica, a Casa dos Arnáus mostra ainda cravado o remate antigo, com o brasão dos Duques de Lafões, ladeado de aletas, obra do séc. XVII. Este escudo terá sido transposto da entrada. A casa desenvolve-se em dois pisos – o térreo e o primeiro andar. Apresenta varanda na fachada nascente que conduziria à entrada nobre da casa. O piso térreo está a uma cota mais baixa do que o nível da estrada. A fachada principal é composta, ao nível do primeiro piso, por seis portas sacadas. As duas centrais conduzem a uma varanda. Parte da perda de imponência que este solar teve, deve-se certamente ao facto de a cota do arruamento ter subido bastante o que de alguma maneira “atarracou a casa” quebrando-lhe a altura. A fachada posterior é quase anulada pelo talude da encosta em que se implantou o edifício, a antiga Quinta dos Melos pertença da família com o mesmo nome.

A casa terá sido mandada construir pelos Duques de Lafões, talvez no séc. XVII. Daí passou para os citados Arnáos, na centúria seguinte, transitando de seguida para a família dos Melos.

c) A Praça José Falcão

Trata-se de todo o espaço envolvente à Câmara Municipal e fronteiro ao rio. É composto por árvores (plátanos), calçada portuguesa, bancos, espaços relvados e ajardinados, pérgolas e dois repuxos de água nas suas extremidades. É o “centro” da vila.

A parte baixa da população, onde se encontra hoje a zona histórica e principal da vila, incluindo a actual praça José Falcão, foi, até ao início do século passado, constituída por hortas e pomares. Poderá agora parecer estranho que aquela praça tenha alguma vez sido terra arável, mas os mirandenses que hoje estão na casa dos setenta anos podem testemunhar as transformações que, neste relativamente curto espaço de tempo, tornaram certos locais irreconhecíveis.

Nos anos trinta, sendo então Presidente da Câmara Municipal José Firmino Ribeiro da Cunha, proprietário da Farmácia Cunha, foi construído o paredão que hoje ladeia a avenida Belisário Pimenta. Muitos mirandenses se lembrarão disso e ainda serão vivos alguns dos que trabalharam na sua construção. Do lado da praça José Falcão (conhecida até há poucos anos como “a Feira” por se realizar ali o mercado semanal) o paredão é mais antigo, talvez um pouco anterior ao edifício dos Paços do Concelho que começou a ser construído em 1916.

d) O velho e o novo edifício da Câmara Municipal

Antes de caracterizarmos o edifício actual, eis algumas notas sobre a Casa da Câmara que a precedeu, e que foi demolida em 1918.

Durante anos, o concelho não teve Casa de Câmara. No último quartel do séc. XVIII, a Câmara andava itinerante pelas casas dos juizes ordinários, enquanto os restos do velho edifício iam sendo vendidos. A construção de um novo edifício impunha-se e no ano de 1797 aparece o primeiro pedido oficial da Câmara, nobreza e povo que o Desembargo do Paço despachou. Só um par de anos mais tarde é que obteve do Provedor a informação, talvez só porque neste ano a Câmara apresentasse um projecto com uma minuciosa descrição do que o novo edifício deveria conter. Mas não se passou do projecto: a Câmara continuou a reunir, já não por casa dos juízes, mas por casas alugadas e a cadeia andava, igualmente, por casas particulares. Em 1806 a Câmara requereu novamente a construção dos Paços do Concelho para o Desembargo do Paço, voltando a fazê-lo em 1818. Finalmente, em 1823, é arrematada finalmente a obra e examinado o local, segundo o plano feito vinte e cinco anos antes.

O edifício era para a época e para a importância da vila, de tamanho regular. No piso térreo era composto por uma cozinha; uma cavalariça e dois cárceres térreos com pouca luz e insalubres. No primeiro andar compunha-se de uma sala de audiência e outras divisões mais pequenas; subia-se por uma escada de pedra. A aparência exterior seria sóbria: na frontaria em baixo compunha-se de quatro janelas gradeadas de cantarias simples; o portal de entrada, sobre uns degraus redondos, teria por cima as armas reais. Em cima o alçado mostrava duas janelas rasgadas ao centro com grades e outras duas janelas de peito aos lados; o telhado teria quatro águas e nele, na linha do portal de entrada, um campanário para a sineta em cantaria. As fachadas nascente e poente eram secundárias e reduzidas. Em frente da fachada principal encontrava-se o pelourinho.

Devido ao facto de estar “entalado” entre o rio e o casario, o autor do projecto não lhe deu uma feição rectangular; uma vez no terreno concluiu-se que tal implantação era possível. A construção da Casa da Câmara e Cadeia começou por volta de 1825, mas parou passado pouco tempo por desavenças entre a Câmara e o empreiteiro. Em 1828 a obra estava quase concluída. Sabemo-lo porque houve reunião magna para a feitura do escudo real, que devia sobrepor-se à porta de entrada do edifício, à altura das janelas sacadas, encimado por uma coroa floreada de aspecto grosseiro. Em 1829 havia já Casa de Câmara, ou seja, a obra estava concluída.

Em 1837, a vila passou a ser cabeça de julgado e resolveu fazer-se uma outra sala de audiências. Belisário Pimenta afirma que é da época de 1838 a sala grande à esquerda de quem subia a velha escada de pedra e as duas pequenas janelas orientadas para o rio na fachada sul. Quando foi proclamada a República, a coroa foi apeada e guardada numa arrecadação do edifício, estando hoje nos actuais Paços do Concelho. Depois com um ou outro reparo, o edifício suportou os seus noventa anos de vida modesta. Em 1918 foi mandado deitar abaixo, a seguir à conclusão dos novos Paços do Concelho.

Do actual edifício da Câmara Municipal, sabemos que em 1916 estava em construção. Foi projectado por Benjamim Ventura, construtor civil diplomado, sendo os trabalhos arrematados pelo empreiteiro Joaquim Ferreira de Araújo, do Arieiro, pela quantia de 9:500$00. As madeiras, cal, tijolo, telha, areia, alvenaria e cantarias grossas, são da região; as restantes cantarias são das pedreiras de Outil, concelho de Cantanhede. Tal como afirmava o jornal especializado “A Construção Moderna”, em 10 de Maio de 1916 “(...) o edifício dos novos Paços do Concelho de Miranda do Corvo, deve ficar, tanto externa, como internamente, com todos os requisitos em construções modernas desta ordem.” Juntamos em anexo as plantas e alçados originais, uma vez que, compreensivelmente, o edifício já foi objecto de uma remodelação do seu espaço interior com vista á sua melhoria funcional.

O edifício é uma mole compacta e orgânica, com um ligeiro avanço na parte central da fachada. Os cantos são delimitados por pilastras calcárias, encimadas por um remate. Ao centro, a entrada no edifício faz-se por duas portas em arco de volta perfeita, encimadas por uma varanda no piso superior onde se rasgam duas portas sacadas de acesso àquela. Compõem ainda a fachada dois panos de parede, cada um com quatro janelas em cada piso. Nos alçados laterais a mesma composição prevê apenas três janelas. O imóvel é coroado pelo escudo municipal.

e) A aldeia brasonada da Tróia

No lugar da Tróia e depois no de Vila Nova teve grande importância, no séc. XVIII e começos do XIX, a família Paiva Manso, da qual descendem, por linha feminina, os drs. Abel Maria Jordão, 1º barão de Paiva Manso, e seu filho, Levi Maria Jordão, visconde do mesmo título. Naquele lugar, existe um grande edifício do séc. XVII, com modificações posteriores. O seu estado de ruína era quase completo e sem remédio, estando agora a ser recuperado.

Na fachada principal mostra sacadas de arestas boleadas e de friso e cornija. No topo crava-se um brasão envolvido de elegantes ornatos concheados, do fim de setecentos: esquartelado de Carvalhos, Freires com diferenças, Paiva e Fonsecas. Foi do capitão-mor Paiva Manso. O capitão-mor Vicente António de Paiva Manso foi o responsável pela construção da parte nobre do imóvel; conseguiu ainda em 1782, autorização para a abertura ao culto da capela de Nª. Sra. da Conceição, pertença do solar. Ao lado desta casa existe uma outra mais pequena datável do séc. XVIII mas modificada com vestígios de um tecto de gamela que cobria uma sala. Igualmente na Tróia existe a capela de Nossa Senhora de Guadalupe. A escultura da padroeira, datável dos sécs. XVI-XVII, é uma tradução em pedra de uma estampa da titular espanhola.

Os Moinhos

A linha-férrea de Coimbra a Serpins tem um apeadeiro próximo deste local antes chamado «Almalaguez». O pequeno edifício da estação situava-se na extremidade sul do lugar dos Moinhos enquanto a Almalaguês dista cerca de 3 Km para Noroeste. Este lugar situado na encosta da serra, ao longo da velha estrada, em frente a antigas largas várzeas de milho era povoação recolhida entregue a trabalhos rurais, ao fabrico do pão que fornecia à freguesia e à cultura do linho que depois ia vender à cidade mondeguina transformado em toalhas e lençóis ornamentados ao gosto tradicional.

O censo de 1527 acusa, juntamente com o lugar do Pinheiro, 6 fogos. A povoação estaria primitivamente confinada ao trabalho das azenhas, aproveitando o caudal do Dueça e tanto que se encontram ainda nos séculos passados os topónimos de Outeiro dos Moinhos (a norte); o Moinho do Oiro (em baixo, junto ao rio); e os Moinhos do «Mal-moe», já desaparecidos no séc. XVIII, que com o próprio lugar dos Moinhos, constituíam então a chamada Ribeira dos Moinhos, conjunto de população laboriosa que se entregaria à faina da lavoura e depois ao fornecimento de pão à vila e ainda à industria da tecelagem: lenços e toalhas de linho com bordados e letras ingénuas, mas perfeitas. Havia à volta da população vários prazos, pertencentes ao mosteiro de Celas de Coimbra, dos quais o mais antigo remonta a 1516.

Era noutros tempos ponto de passagem obrigatório para quem ia de Miranda a Coimbra: ali se atravessava o Dueça para entrar no caminho da Almalaguês, de onde se descia à Portela do Mondego. A travessia do Dueça era feita por intermédio de uma ponte situada no extremo Norte do lugar, primeiramente de madeira, mas talvez já de alvenaria no início do séc. XVIII. E foi por esta ponte – desde 1803 em arranjos devido a uma enchente do rio que a danificou – que na barafunda da retirada do exército francês, em 1811, a divisão de cavalaria de Montbrun chamada à pressa de Coimbra, atravessou para a margem direita do Dueça, depois de descida muito difícil desde o alto de Vila Seca; por ela pouco depois na madrugada do dia imediato, atravessou também a brigada portuguesa de Pack mandada por Wellington com a intenção de surpreender os franceses.

A olaria do Carapinhal

“O mayor trato desta Villa são oleyros (...)” afirma o autor da “Corografia Portugueza”, no início de setecentos. A indústria da olaria de barro vermelho, de remota origem, teve largo incremento nos sécs. XVI e XVII. Em 1681, num dote de casamento de um rapaz, filho de um oleiro, o pai, entre outros bens imóveis, deu-lhe «uma roda para trabalhar». Na segunda metade do séc. XVII, verifica-se que os núcleos residuais dos oleiros na vila eram principalmente no Relego (a poente); nos Linhares (a noroeste); no Outeiro e Carvalhal (a norte), locais na periferia da povoação como era natural. A partir do séc. XVIII, a indústria começou então a decair; os oleiros deixaram a vila onde de início floresceu para se abrigarem nos arrabaldes – Bujos, Espinho e Carapinhal. Os homens que exerciam esta indústria e que naqueles séculos a documentação dá como elementos de alguma proeminência social (Cfr. Pimenta, 1931), decaíram até à modesta condição que gozavam já no séc. XX. E, para mais, como Coimbra era o principal centro de venda dos artefactos e como eles tinham certo cunho artístico, a olaria ficou conhecida como sendo da cidade e daí vem que o asado – atributo indispensável da imagem corrente da Tricana -, o cântaro, o púcaro de Coimbra, celebrados pelos artistas e etnógrafos, perderam a sua verdadeira origem. Os moringues, bilhas, talhas, cabaças são de uma elegância tal que alguém já comparou a esbeltez destas peças à escultura grega.

No dealbar do séc. XX a introdução do caminho-de-ferro aproximou as emergentes cerâmicas destes pólos de escoamento da produção ao mesmo tempo que encurtava a distância entre a vila e a cidade do Mondego.

Pensamos que a arte da olaria do barro vermelho não irá morrer, devido à sua progressiva rentabilidade económica por via do artesanato. Cremos que a prevista criação de um “Museu do Oleiro” poderá perpetuá-la e honrar a memória dos artistas. No Carapinhal, centro de olaria regional, como afirmámos, desde tempos centenários, encontramos o modesto santuário dedicado a S. Silvestre. Destaca-se uma escultura de pedra daquele santo, obra do séc. XIV e muito regular, representado vestido de bispo, com casula e mitra, báculo na mão esquerda e livro na direita. O protagonismo que lhe damos advém do facto de que é a mais antiga representação escultórica religiosa do concelho, de que há provas, remontando ao séc. XIV.

Sucintamente podemos descrever como se fazia a preparação do barro conducente à feitura das peças. Assim o barro, extraído no Verão em locais diferentes consoante a sua cor, era transportado em cestas até ao “monte”, local onde era acumulado. Deste monte, o barro ia para o barreiro, junto da oficina. Esta encontrava-se próxima da habitação do oleiro.

No barreiro o barro era molhado, cortado e picado. Na oficina situava-se a “curtidoira”, pequeno espaço térreo destinado a curti-lo depois de misturado. Este trabalho era feito com os pés descalços e com a ajuda de um maço. A curtidoira foi depois substituída pela maroma e mais tarde pela fieira. Com uma foice cortava-se o barro formando-se as “talas” que eram depois moldadas para ficarem cilíndricas.

A maroma (ou maromba) é uma máquina de fabrico simples, colocada fora da oficina com um espaço livre a toda à volta, para que o boi que a acciona, poder circular livremente. A fieira é uma máquina eléctrica que além de misturar as diferentes qualidades de barro, quebra qualquer partícula que possa prejudicar o trabalho.

Depois de descaroçar a tala, o oleiro cortava a peça em três pélas cilíndricas e transportava-as para a adoquina onde eram colocadas para serem moldadas.

A seguir procedia-se à moldagem. O oleiro colocava a péla na cabeça do torno, instalava-se no assento e, firmando o pé esquerdo na “estevedeira”, com um movimento brusco do pé direito descalço e depois com destros e regulares impulsos na folha, iniciava as diferentes “fases” ou “tiradas” para dar forma à péla. Molhando frequentemente as mãos na “barrotina” ou “lambugem”, água que se encontrava numa caçoila velha próximo do torno e moldava a peça com a ajuda de uma cana e de um farrapo.

Com a peça já acabada o oleiro recortava-a da cabeça do torno com o “arame”, colocando-a depois na tábua. Esta suportava as peças já moldadas. As peças maiores, como cântaros e potes, eram feitas em duas etapas: primeiro fazia-se a parte superior – capela – e depois a inferior – enchente -, à qual se sobrepunha a primeira, uma vez invertida. Havia ainda peças maiores – as tarefas – cuja base era feita no torno e o restante feito com tiras de barro que o oleiro ia fazendo com as palmas da mão.

Passando-se à secagem, as peças eram colocadas sobre tábuas expostas ao ar livre em local próximo da oficina, durante cerca de três horas. Findo este período voltavam para o interior da oficina e eram colocadas nos andaimes alguns dias para que a água evaporasse lenta e completamente.

Há certas peças em que o oleiro do Carapinhal procede à sua ornamentação. Esta pode ser realizada antes, durante ou após a secagem. No primeiro caso a ornamentação consiste em linhas onduladas ou quebradas feitas com a cana ou com impressões das “formas”. Durante a secagem da loiça, poder-se-iam desenhar as iniciais das pessoas. Após a secagem as peças poderiam ser “brunidas” com uma pedra, deixando um rastro brilhante.

Assadeiras, potes, caçoilas, tarefas e outras peças eram sujeitas à vidragem. Mergulhava-se a loiça numa mistura de zarcão e água e colocava-se novamente a secar.

A cozedura é um aspecto muito importante em todo o processo. A loiça era colocada invertida e empilhada no sobrecéu do forno. A boca deste era tapada com o “tapadoiro”, deixando-se um pequeno espaço superior aberto. Introduzia-se o “framugalho” (agulhas de pinheiro) e a lenha na caldeira. Durante cerca de dez horas a loiça era sujeita a temperaturas que rondavam os 800/900ºC. Se o objectivo fosse escurecer a loiça, tapava-se totalmente a entrada do sobrecéu, o que impedia o fumo de sair e tornava as peças negras. Finda a cozedura era necessário esperar dois dias para retirar a loiça.

Eis um naipe das peças mais características da olaria:

Asado: utilizado originalmente para o transporte de água, usa-se hoje em dia na decoração. Será talvez a peça mais conhecida pois a sua imagem é vulgar ao lado da das Tricanas.

Assadeira: recipiente de forma oval, utilizado na cozinha para assar carne ou peixe no forno.

Assador: utilizado para assar castanhas no fogareiro.

Bilha: recipiente para transporte de água.

Caçoila: fabrica-se em barro vermelho podendo ou não vidrar-se ou escurecer-se. É usada com frequência para os nossos pratos típicos como a Chanfana, a Sopa de Casamento ou os Negalhos.

Cântaro: preterido hoje em dia a favor dos recipientes de plástico era rematado pelo telhadouro ou testo e pelo pucarinho. Possui duas asas espalmadas opostas diametralmente e invertidas, uma em relação à outra. Tinha também como função o transporte de água.

Fetricas: é o nome dado à loiça em miniatura, normalmente feita para as grandes feiras religiosas – fogareiros, mealheiros, alminhas, campainhas.

Fogareiro: era utilizado em casa para assar sardinhas e pimentos.

Infusa: é um tipo de talha com uma só asa, utilizada para transportar água para o campo.

Morim: era, segundo Edgar Lameiras, originalmente usado para o transporte de água para os campos.

Moringa: recipiente usado para aprovisionar água. Segundo Edgar Lameiras “...esta peça era bastante conhecida quer na cidade de Coimbra, quer nos apeadeiros dos caminhos-de-ferro em que mulheres de bilhas na cabeça vendiam a água fresca aos passageiros ocasionais que por lá passavam”.

Picheira: é normalmente vidrada e utilizada em casa para o vinho ou para a água-pé.

Pote: utilizado para conservar água, azeite ou azeitonas. Pode ou não ser vidrado, mas quando utilizado na conservação do azeite convém que o seja.

Púcara: recipiente de barro utilizado para beber ou aquecer água.

Tarefa: era usada nos lagares para caldear o azeite. Apresenta uma ornamentação invulgar: é contornada horizontalmente e a toda a volta por rolos de barro pressionadas espaçadamente, disfarçando e conferindo maior aderência às diversas partes que a constituem.

Vaso e prato: utilizados para as plantas.

A freguesia de Lamas

Foi uma freguesia separada de Miranda do Corvo, começando por um curato de apresentação do pároco daquela, até se tornar independente no séc. XIX. O seu nome advirá com toda a probabilidade das características geomorfologicas do seu terreno.

A Igreja Paroquial tem por titular o Espírito Santo. O actual edifício é uma reconstrução do séc. XIX. Desde 1733 que se instava pela substituição da velha igreja, mas só em 1796 se começou a tratar a sério do assunto e em 1804 arrematou-se a obra por 2.600$000 reis. Em 1807 estava pronta, pois neste ano o juiz da igreja prestou contas perante a autoridade eclesiástica. Estava pois ainda fresca quando passou o turbilhão invasor francês, sendo saqueada e incendiada. No final de 1811 o cura Manuel Fernandes intentou oficialmente de novo a sua reconstrução (Cfr. Pimenta, 1931).

Possui três retábulos tradicionais do séc. XIX. O principal mostra uma pintura versando o Espirito Santo, assinada por J. F. Alvarinhas e datada de 1883. Este artista já o havíamos encontrado nas pinturas interiores da capela do Calvário. Notam-se, entre as esculturas, uma Nossa Senhora do Rosário, de pedra, do séc. XVI, renascentista, representando a Virgem com o Menino, o qual brinca com uma ave. A Trindade, de pedra, é da transição do séc. XVI para o XVII. A pia baptismal é de um tipo renascentista comum.

Uma vez em Lamas, terá todo o interesse uma deslocação a Chão de Lamas para se poder admirar o solar que pertenceu à família Paiva Manso – agora propriedade particular - e que ostenta um imponente brasão transportado pela família do seu imóvel de Vila Nova. José Joaquim de Paiva Manso, nasceu a 9 de Janeiro de 1804 e foi um dos signatários do auto de aclamação da revolta chamada “da Maria da Fonte”. O seu filho, José de Paiva Manso Sárrea Carvalho, nasceu em Chão de Lamas a 18 de Dezembro de 1850. Conhecido como o morgado de Chão de Lamas, passava os dias caçando, metendo-se um pouco na política local, procurando repovoar de novas cepas as vinhas dizimadas, em 1855, pela invasão do oidium e depois pela filoxera. Acabou por ir viver para Lisboa. Morreu em Abril de 1931, sendo o último morgado de Chão de Lamas e o último representante da opulenta casa da Tróia que, no séc. XVIII, tanto brilho e nome deu ao concelho mirandense.

A freguesia de Santiago de Rio de Vide

S. Tiago foi um dos apóstolos de Cristo que, de acordo com a lenda, foi mandado decapitar no ano 42, após ter realizado a sua acção missionária em Espanha. O seu corpo, lançado ao mar num barco, teria, milagrosamente, vindo aportar junto à foz do rio Ullam, em Iria Flávia (hoje Padrón, na Galiza). Aí, terá sido sepultado num túmulo construído pelos seus discípulos.

Muitos séculos mais tarde, no ano de 772, ao que se diz, apareceu uma estrela brilhante que indicou o lugar onde se encontravam os restos mortais de S. Tiago, assim como para onde deveriam ser transladados: a futura cidade de Compostela, nome que significa «campo de estrela». Rapidamente as peregrinações a este lugar passaram a ser tão importantes como aquelas que se realizavam aos lugares santos. Durante os séculos XII e XIII, milhares de peregrinos rezaram junto ao túmulo do único apóstolo de Cristo sepultado no Ocidente (à excepção de S. Pedro, que está em Roma). A grande religiosidade dos homens, as lutas que então se travavam contra os inimigos da fé cristã, quer na Península Ibérica quer na Palestina, em muito contribuíram para a fama deste local de oração.

Os peregrinos que se deslocavam a Compostela faziam-se acompanhar de uma concha e de um bordão. Ao longo do caminho, o peregrino tinha assinalados os santuários onde deveria prestar culto, bem como várias insígnias e reproduções da imagem do santo que tinham uma função protectora.

Por outro lado, a existência de gafarias em território português deve ser anterior à fundação da nacionalidade. De um modo geral eram, na província, pequenos edifícios do género das albergarias nos quais eram isolados os leprosos. Não havia lugar de certa importância que não tivesse a sua leprosaria, geralmente edificada longe do povoado, pois o terror do contágio levava as autoridades a obrigar os gafos a tocar uma campânula quando saíssem do recolhimento, a fim de prevenirem os transeuntes da sua passagem. As gafarias portuguesas podem-se classificar em três tipos: as criadas por iniciativa régia, caso da nossa de Rio de Vide; as municipais; e as estabelecidas pelos próprios gafos e por eles administradas. É também notória a existência de gafarias nas rotas de peregrinação, como seja esta de S. Tiago.

O nome Rio de Vide provirá da existência outrora de um rio - Rio Torto - cujas águas, consideradas curativas, eram bastante procuradas por pessoas doentes, nomeadamente gafos. Há, pois, a hipótese de Rio de Vide ser a evolução fonética de “rio da vida” relativo à capacidade curativa daquelas águas. A história desta freguesia anda ligada à gafaria de Coimbra. Foi esta leprosaria fundada e construída em execução do testamento de D. Sancho I, de 1210. Anteriormente, em 1201, já Rio de Vide recebera carta de foro ou povoamento, que D. João I confirmou em 1385. Os casais que a gafaria aí tinha ficavam em Rio de Vide, no Vidual (Viduais) da mesma freguesia, e no lugar das Cortes da freguesia de Semide. D. Afonso V confirmou por duas vezes os privilégios dos lavradores dos ditos lugares. O cura da igreja era apresentado pelo vigário de Foz de Arouce, o que indica dependência do Mosteiro de Lorvão.

A igreja paroquial tem S. Tiago por titular. A invocação parece-nos estar relacionada com o facto de este ser um caminho utilizado pelos peregrinos que se dirigiam à nortenha Santiago de Compostela. É uma construção modesta, com torre à direita, sobre um arco de passagem. Aqui se conserva o retábulo delineado pelo arquitecto Rodrigo Franco, em 1746. D. Tomás de Lima e Vasconcelos, visconde de Vila Nova de Cerveira era titular de vários senhorios, detinha também o padroado de várias igrejas e possuía várias comendas entre as quais esta de Rio de Vide e a de Foz de Arouce. Preocupado com as necessidades das terras que senhoreava, providencia para que a igreja matriz de Rio de Vide fosse dotada com um retábulo-mor feito à moderna e um arcaz para a sacristia, e a de Foz de Arouce com uma nova imagem de S. Miguel. O arquitecto das ordens militares, Rodrigo Franco, foi encarregado de gizar as respectivas traças e apontamentos, o que fez em Março de 1746, obra que foi arrematada pelo mestre ensamblador João Miguéis, de Tentúgal, no ano seguinte (Cfr. Borges, 1986). O altar-mor, os dois colaterais e mais dois na nave são uns modernizados, outros feitos de restos de talhas antigas. As esculturas são correntes destacando-se S. Tiago, o padroeiro, no altar-mor, escultura de pedra do séc. XV, vestido de túnica e manto de apóstolo, só com as insígnias de romeiro, a bolsa a tiracolo e o bordão, obra de grande qualidade (Cfr. Gonçalves, 1952). Existe ainda uma Nossa Senhora com o Menino, do séc. XVII. Um dos sinos tem a data de 1784, em cujo castalho gravaram a de 1780; outro está assinado por António Dias de Campos Sorrilha, Cantanhede, e o ano de 1896, vendo-se igualmente na madeira o de 1896.

Na parte alta da povoação existe a capela do Senhor da Agonia, onde se percepcionam alguns elementos da Renascença reempregues. No cume da empena tem uma figura de vulto, a que o povo chama o «santo das abóboras».

A freguesia pertenceu, até 1839, ao concelho da Lousã. A partir de 1840 passou a fazer parte do concelho de Semide, entretanto extinto em 1853.

Rios de Vide, tal como Almalaguês, situavam-se nos acessos sul à cidade de Coimbra. Por estes dois lugares passariam os peregrinos jacobeus que provenientes da Via da Prata, optavam por encurtar caminho atravessando o território português e se dirigiam a Coimbra vindos de Campo Maior, Portalegre e Amieira do Tejo. Chegados à cidade do Mondego, o seu percurso passaria também pelo Hospital de S. Lázaro Extramuros. Ao longo destes caminhos foram aparecendo, com o intuito de assistir os viandantes, a albergaria, o alcouce, a estalagem, o hospício, o hospital, o mesão, a pousada, a gafaria. Mas também a fonte, o padrão e a venda. É de realçar a presença destes elementos na toponímia geral dos caminhos de peregrinação.

Rio de Vide, voltada a nascente, próximo da pequena ribeira do Pisão que se vai lançar no Ceira, não longe de Foz de Arouce, lá está seguindo a sua pacatez e acolhendo quem a visita. Era também local de passagem de romeiros para a secular romaria do Divino Senhor da Serra. Trata-se de uma povoação que, ainda hoje, mantém algum do seu património construído, sendo de realçar, como o fizemos, a Igreja e a imagem de S. Tiago.

Alguns pormenores arquitectónicos presentes nas suas casas são dignos de nota. Calcorreando as suas ruas deparamo-nos ora aqui com uma janela renascentista numa capela; ora ali com um relógio de sol, impondo-se na fachada de uma casa centenária. Por aqui se cantam as Janeiras e outras músicas tradicionais na altura própria. A gastronomia suculenta é dominada pela Chanfana que deve ser acompanhada de grelos, pelos negalhos e pelo arroz doce. Também o artesanato com as suas magníficas rendas, bordados, tapeçaria e cestaria, nos alerta para a simpatia e afabilidade das suas gentes.

A freguesia de Semide

A vizinhança da «civitas» antecessora da actual Coimbra, alguma arqueologia local ou das imediações e um ou outro topónimo, dão ao lugar possibilidades de um povoamento bastante recuado ou pelo menos anterior à Nacionalidade. O topónimo Segade, por exemplo, de origem germânica, é indicativo da existência pré-nacional de uma «sagati», ou seja, uma villa ou semelhante propriedade rústica. De qualquer maneira a história de Semide, que significará, etimologicamente, a flor da farinha, confunde-se com a do Mosteiro, que era senhor da vila e termo.

De algumas alocuções literárias encontradas relativas à vila, sobressai uma descrição geográfica da freguesia de Semide, de autor anónimo, em decassílabo de rima emparelhada. É curiosa e louva a terra, fazendo uma descrição pormenorizada da topografia da região de modo calmo, sem arroubos poéticos, podendo talvez ser datada de finais do séc. XVII:

«Semide» discripção geographica

Tem Semide por corôa tres outeiros

o Facho, a Arroteira, os Carvalheiros:

o scetro que apoder supremo enserra

venera humilde no Senhor da Serra:

a ribeira que corre ao levante

lhe serve de theatro vegetante

onde acham de regatos em rodeios

os olhos confuzam avista enleios.(*)

Formando aos sentidos mil enredos

Bosques, campos vergeis e arvoredos.

O monte que ádireita se diviza

E na vila de Miranda finaliza

Lhe serve de muro iminente

Contra os ventos que sopram de occidente.

De fronte tem Trovim, país de frio

Que as estrelas provoca o desafio;

Tanto he deste monte aiminencia

Que quer ter com os astros competencia;

Ao norte se descobrirem se não falho

As raizes da serra do Carvalho

Que dahi vam correndo em plana bella

De Poiares até aponte da Morcela:

A vista lhe termina no orizonte

Da estrella asserra, e da neve o monte.»

Leia-se, no nono verso: «os olhos confusão, a vista enleios» (B.G.U.C., Ms. 1017, fl. 57).

a) O Mosteiro beneditino de Santa Maria

Para a fundação doaram a vila de Semide, D. João Anaia, bispo de Coimbra (1148-1154) e anteriormente cónego e prior da mesma Sé e seu irmão Martinho Anaia, alcaide de Coimbra, bem como sua esposa Elvira Afonso. João e Martinho eram filhos de Anaia Vestráris, Anião da Estrada à luz do Nobiliário do Conde D. Pedro, primeiro donatário de Góis (Cfr. Melo, 1992).

Em 30 de Abril de 1154, D. Afonso Henriques que já dera o seu consentimento para a referida doação, coutou a vila de Semide ao abade João, pessoa distinta do bispo fundador. A vila encontrava-se no território do castelo de Arunce, indicando a carta os limites com que ficava. Os descendentes de Martinho Anaia, em 1183, renunciaram os direitos que tinham no mosteiro, como padroeiros, a favor de D. Sancha Martins, para esta aí viver como monja. Deve-se ter dado nesta altura a transformação do mosteiro em ramo feminino. Foi, pois, fundado por monges mas passou depois para monjas. Questiona-se, como o fez Rui Cunha Martins, se a passagem foi directa ou se as monjas terão tomado o mosteiro entretanto abandonado. O bispo de Coimbra, em 1200, concedeu também, à mesma abadessa, os direitos que aí tinha como bispo a troco de quatro marcos de prata, bem como os dízimos do lugar.

Até meados da época moderna o mosteiro segue na sua pacatez, sem notícias de monta. Com a formação da congregação de S. Bento, tendo por geral o abade de Tibães baseada na bula de Pio V em 1566, este mosteiro ficou nela incluído. No princípio do séc. XVII (1606), o bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelo Branco, conseguiu de Paulo V, um breve com vista à extinção deste mosteiro e à sua união ao mosteiro novo de Santa Ana, que edificara para aquelas monjas e para estas de Semide. Chegaram a ir para Santa Ana, onde estiveram de 20 de Fevereiro até 12 de Março de 1610, mas retornaram. Mas cedo se fizeram sentir os protestos das monjas beneditinas, de tal forma que o bispo se deslocou imediatamente a Santa Ana. Reunindo as freiras em plenário, pediu-lhes que cumprissem as ordens do Papa. A negativa foi imediata e categórica e, segundo conta Frei Leão de São Tomás, o bispo viu-se mesmo obrigado a mandar prender uma das contestatárias mais exaltada; sendo ratificado este regresso por provisão do mesmo bispo, a 14 de Abril do mesmo ano (Cfr. MELO, op. cit., p. 19).

Quem ingressava em ordens religiosas eram pessoas com alguns haveres vindas, normalmente, da nobreza. Por Semide passaram algumas figuras que através dos seus actos ficaram, melhor ou pior, nos anais da história. A par de problemas com a Inquisição ressalta a presença em terras de Semide, talvez que ainda por pouco tempo, da pintora Josefa de Óbidos, como aventa o historiador de arte Victor Serrão (Cfr. Serrão, 1991). A pintora terá também feito uma curta escala no Convento de Sant'Ana de Coimbra antes de desistir de ser monja e se ir instalar definitivamente em Óbidos.

Devido à extinção das ordens religiosas e desamortização dos bens, as freiras passaram grandes necessidades, chegando a vender pratas como aconteceu em 1845. Todavia ainda saíram do convento, para a antiga Academia de Belas Artes de Lisboa, sete carros de bois com objectos diversos.

A última religiosa professa, D. Maria dos Prazeres Pereira Dias, faleceu a 21 de Agosto de 1896. Continuaram ali algumas pupilas até à adaptação do edifício à obra de assistência infantil da Junta Geral da Província. O edifício monástico encontrava-se na maior ruína e inabitável, mostrando tectos ruídos em grande extensão. Foram levados a cabo trabalhos de adaptação por aquela entidade.

Actualmente está a ser alvo de uma intervenção por parte da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, pois ficou bastante danificado pelo último incêndio ocorrido na década de noventa. Sob a coordenação do arquitecto Victor Mestre, foi recentemente descoberta a primitiva fornalha do refeitório.

A igreja do mosteiro foi inaugurada em 1697 e como a maioria das igrejas de ordens femininas é de uma só nave com porta lateral e coro ao fundo. Serve actualmente de igreja paroquial. Parece que nada se encontra à vista do que tivesse pertencido aos edifícios medievais. A parte mais antiga é a do claustro do séc. XVI (cerca de 1540), que actualmente está em mau estado. O incêndio de 1664, devorou a maior parte do edifício, obrigando à sua reforma no séc. XVII, sendo inaugurada a igreja em 1697. Esta obra não foi terminada, como se vê do claustro segundo que só tem duas alas.

O núcleo primitivo devia ter sido no espaço do claustro quinhentista e no da igreja. O mosteiro era pobre e, apesar da largueza mostrada na reforma seiscentista, esta não se equipara a outras obras similares do tempo e do distrito. A linha geral é definida pela fachada do terreiro segundo a orientação Este/Oeste. Começa pela igreja e termina pelo lanço do dormitório. Para trás daquela, a sul, encontra-se o claustro quinhentista, envolvido outrora de corpos de celas, sendo o maior o de nascente, que avança além da linha do quadrilátero. Em ligação com aquele claustro, nas traseiras do lanço do terreiro, fica a parte que se construiu do claustro seiscentista, sendo o lanço do poente mais amplo e avançando na direcção sul, o qual continha cozinha e refeitório. Aqui ainda é perceptível alguma pintura mural decorativa, além da referenciada fornalha.

O projecto do séc. XVII era o de formar um conjunto maciço de construções, a que davam unidade os dois claustros ligados. Os pisos térreos não se encontram no mesmo plano, o do claustro quinhentista fica bastante mais baixo. Assentando o convento num pequeno promontório, destacado do monte do Senhor da Serra, a parte plana era diminuta.

Um terreiro alonga-se em frente da face norte da igreja e da ala do dormitório que a prolonga. Na sua entrada existia o edifício das hospedarias (no qual faleceu o bispo D. Miguel da Anunciação, em 1779), que caiu e sob o qual se passava para o mesmo terreiro. A meio, no sítio do pequeno cruzeiro, existiu talvez a capela que serviu de paroquial. No ângulo do extremo levanta-se uma pequena torre dos sinos, mais moderna.

A frontaria da igreja é nua, alegrada só pela porta barroca, notando-se a divisão do coro e da igreja meramente pela diversidade de aberturas; a do dormitório separa-se por pilastras rudes, com o arco da portaria ao meio. A igreja foi inaugurada em 1697. Compõe-se de capela-mor, uma só nave, com a porta lateral, seguida do coro monástico, tendo estas três partes as suas paredes no mesmo alinhamento. A capela-mor, da largura da nave e um pouco mais baixa, abre-se por um arco simples. Cobre-a um tecto de madeira, em arco redondo, dividido em caixotões (cinco séries de seis), com as divisões douradas, pintados os claros de trinta cenas da Vida de S. Bento, de artista secundário, mas dando um bom efeito global.

O retábulo de madeira dourada, de colunas num plano frontal e nicho largo, de quatro colunas e arcos com parras, pertence à época de D. Pedro II, o fim do séc. XVII. Nos intercolúnios destacam-se duas grandes esculturas de madeira, da mesma época e de grande qualidade, as de S. Bento e Santa Escolástica, atribuíveis ao escultor beneditino Frei Cipriano da Cruz. As paredes mostram alizares de azulejos, de fabrico de Coimbra, dos meados do séc. XVIII, contendo as cenas da Anunciação, Visita, Creche, Magos, Fuga e Circuncisão. O corpo pode-se considerar dividido em duas secções pela linha da porta. Na do lado da capela-mor abrem-se quatro arcos. Cada um contém o respectivo retábulo, do mesmo tipo pequeno, de quatro colunas torcidas, em disposição reentrante, do fim do séc. XVII. As esculturas titulares deles são: do primeiro à esquerda, Virgem com o Menino (Rosário), do séc. XVIII; no segundo, grande Cristo Crucificado, do fim do séc. XVII; à direita, no primeiro, S. João Evangelista, do séc. XVIII; no segundo, Piedade, do séc. XVII. Todas elas são de madeira. Subsistem ainda outras peças dignas de interesse: um S. João Baptista, de madeira, do séc. XVIII; S. Brás e S. Pedro de pedra, de fins do séc. XVI. Num dos altares suspende-se um pequeno quadro oval, do séc. XVIII, muito gracioso, em que um Anjo dá a Comunhão a um Santo. Algumas obras foram transferidas para a sacristia ou dependências; outras estão a ser alvo de recuperação.

Na secção abaixo da porta, cava-se à direita um pequeno reduto com a pia baptismal. O corpo possui alizar de azulejos, do último terço do séc. XVIII, de fabrico de Coimbra, só de motivos ornamentais entre as pilastras típicas daquele centro; havendo como tema figurativo o Baptismo de Cristo, junto à pia.

A porta principal barroca é de vão rectangular, enquadrado por duas colunas jónicas e, sobre o entablamento, uma composição ornamental, encerrando um medalhão com S. Bento, dois anjos-famas sobre volutas e, no remate, o escudo da congregação beneditina; composição tipicamente coimbrã dos finais de seiscentos e primeiro terço do século seguinte.

O Coro é vasto, de um só piso. Abre-se para a igreja por um grande arco, fechado com uma grade de ferro. Encostam-se às paredes os cadeirais, deixando um pequeno espaço, a um e outro lado, para a parte do arco, destinada a dois retábulos. Os cadeirais tinham duas ordens de cadeiras, conservando-se só as de cima, dezasseis por banda. Obra corrente de marcenaria, com altos espaldares, divididos por pilastras do séc. XVII. Cada pano tem uma pintura com um santo da ordem, a que excepcionalmente se vêm juntar outros que a ela não pertenceram, sendo as imagens cercadas de grinaldas. Rasgam-se pequenos nichos, sem decoração, a cercar o arco com alguns santos como seja Santa Isabel de Portugal. Na sacristia é possível ver algumas obras para aí transferidas da igreja e do coro: S. João em Patmos, a Adoração dos Magos, do séc. XVII, Santa Ana com a Virgem, tela, do séc. XVIII, de oficina de Lisboa; Cristo descido da Cruz, tela, do séc. XVII; do mesmo século uma tábua com a Virgem e em volta cenas da Paixão, de mera etnografia religiosa; outra pintura regular é a Cabeça de Cristo, sobre cobre, dentro de uma rica moldura, concheada, do séc. XVIII; há ainda um Cristo aparecendo a uma beneditina, tela do séc. XVII. Revestem as paredes azulejos policromos, de fabrico de Lisboa, do séc. XVII, com entrelaces quadrifoliados. No topo posterior, colocaram um alto órgão e a respectiva tribuna, de balaustrada vazada, da segunda metade do séc. XVIII e de bom efeito. Inferiormente aplicaram azulejos, provindos do claustro, do séc. XVIII.

O ante-coro é uma pequena quadra, cercada de lambris de azulejos com rosáceas, do fim do séc. XVIII, de oficina de Coimbra, coroados os panos por vasos de flores. Num dos pequenos altares, encrostaram um baixo-relevo de pedra, de Santa Maria Madalena, estendida, da segunda metade do séc. XVI; do mesmo tempo e matéria é um S. Bento.

O claustro segundo deveria formar o núcleo da grande extensão construtiva do séc. XVII. Estudado com austeridade e economia, dentro de certa grandeza, compuseram a arquitectura de cada pano como se ele fosse a parte da parede, sem colunas, daquela composição clássica em que, no andar baixo, alternava um arco e um intercolúnio, com pequena abertura a meio deste; seriam pois em cada face três arcos separados por um muro, no qual se abria um pequeno arco, abaixo da linha das impostas daquele. No andar alto haveria um renque seguido de colunelos toscanos, sobre parapeito corrido. Só foram construídos dois lanços: o do norte, encostado ao principal corpo monástico e o do poente. Apenas neste se encontravam os colunelos da galeria alta há 60 anos atrás, mas agora também existem os de norte de construção recente.

Existiram neste claustro azulejos do último terço do séc. XVIII, de fabrico de Coimbra, restando alguns vasos floridos que coroavam as divisórias dos panos. Poderiam ter sido do mesmo género dos que existem na parte do lanço que vai em direcção ao outro claustro, só de rosetas, formando um esquema geral losangular.

O claustro primeiro – o mais antigo e mais interessante, mas também o mais destruído - encosta-se à igreja e assenta em plano inferior ao nível geral dos edifícios. Pertence aos princípios do Renascimento mas com ressaibos anteriores. Datado de cerca de 1540, é um exemplar muito interessante. Deve datar daquele período de obras que há referência na carta da abadessa do tempo e dirigida a D. João III (que anteriormente parece ter visitado pessoalmente o mosteiro), de 15 de Janeiro de 1537.

O claustro é formado por cinco vãos de cada lado, arcos semicirculares, levemente abaixados, sobre colunas. No andar de cima tinha, antes do último incêndio, colunelos a sustentarem a trave. Os arcos são levemente chanfrados. As colunas pertencem a um tipo toscano, diversificando-se todavia os capitéis.

Houve obras de reforma no séc. XVII, como se via num letreiro sobre uma porta: ESTAS.OBRAS.SE.FIZERAMSENDO.DONA.ANNA.PEREIRA.ABB(ADESSA).ETODAS.FEITAS.NA.ERA.DE.1640.

A nascente abria-se a Sala do Capítulo. A sua porta é de arco duplo, com coluna medial. O seu interior ardeu completamente. Aquando da visita ao mosteiro feita nos anos 40 do século passado pelo Pe. Nogueira Gonçalves, ele descreve-nos assim o então existente interior da Sala do Capitulo: ”Interior modesto, dividido transversalmente por três colunas jónicas sobre pedestais, a sustentarem uma trave, que poderão ser já do séc. XVII. Restam da decoração algumas pinturas em tábua e na argamassa, formando friso de assuntos agiológicos, do séc. XVI, dum tipo absolutamente popular, mas que deveriam dar grande graça à quadra”.

Em duas das galerias do claustro conservavam-se ainda azulejos, do mesmo tipo dos das galerias baixas dos Gerais universitários, do último terço do séc. XVIII, de fabrico da cidade. Apenas se vêm fragmentos. Neste claustro havia vários arcos-capelas com pequenos retábulos. Três deles foram levados para uma sala-oratório. São do fim do séc. XVII. Na mesma sala aplicaram restos de azulejos dos sécs. XVII e XVIII. Neste claustro e na sala do capítulo há bastantes campas fúnebres e com letreiros. Na mesma campa – como se pode ver em certos mosteiros da cidade de Coimbra – regista-se frequentemente mais do que uma inumação, indicando-se os nomes e as datas da respectiva sepultura, ou frequentemente só a data.

Em termos de alfaias, conserva a igreja, para uso paroquial, um conveniente número de tecidos, que ficaram depois das retiradas feitas pela Fazenda Nacional. São tecidos de tipos correntes nas colecções públicas, principalmente do séc. XVIII (Cfr. Gonçalves, 1952).

b) A aldeia e o Santuário do Senhor da Serra

A aldeia do senhor da Serra situa-se no topo de um monte, a cerca de 10 Km da cidade de Coimbra, a 12 Km da sede do concelho, Miranda do Corvo e a 3 Km da freguesia de Semide, à qual pertence. As gentes residentes nesta localidade dedicam-se, predominantemente, à agricultura e colateralmente à silvicultura. Desta região saem para todo o País, especialmente para o interior beirão e para a região algarvia, sem esquecer os nossos vizinhos espanhóis, grandes carregamentos de árvores de fruto. Actualmente uma significativa franja de população desloca-se para Coimbra, onde desenvolve actividades ligadas ao comércio e prestação de serviços. Se foi com o Santo Cristo e com a construção da primitiva ermida que se acha criado o povoado do Senhor da Serra, foi com a entrada em funcionamento da Escola Primária do Plano dos Centenários, em 1968, que a população começou a almejar a mais altos voos, ainda que o primeiro Posto Escolar Misto fosse anterior ao ano de 1947. Hoje o Senhor da Serra é uma povoação moderna sem perder o seu cunho tradicional. A aldeia que primitivamente se situava a poente, no vale, por ser mais fértil e onde os rigores do tempo não se faziam sentir de forma tão acentuada, subiu o monte e estendeu-se para nascente, conquistando à floresta novas leiras, onde a agricultura se faz agora praticamente para consumo próprio.

A primeira referência à povoação do Senhor da Serra aparece em 1678, num assento de óbito de uma romeira de Alfarelos que terá vindo morrer à capela do Senhor da Serra., ainda que tenhamos que considerar que este povoado teve o seu início com a construção da ermida, talvez por alturas de 1663. Até então, Serra, era a designação dada pelos aldeões a este terreno acidentado, que parecia desafiar os deuses no seu processo de conquista do infinito. Nesta região predominava a densa floresta, onde se faziam sentir, de forma assustadora, os lobos que eram combatidos sem descanso pelos habitantes de Vale de Colmeias, Chãs, Bouças, Gaiate, etc, dado que aqueles não deixavam descansar no seu aprisco as ovelhas dos rebanhos. É crível que esta região tão agreste fosse muito utilizada por viajantes que demandavam outras paragens. De Nascente a Poente, para aqueles que faziam o percurso de Castanheira de Pêra, da Pampilhosa da Serra, Poiares, Foz de Arouce e mesmo de Miranda do Corvo, até ao litoral, passando por Coimbra. De Norte a Sul para todos os que de Viseu seguiam para a zona de Leiria, pois era o caminho mais curto para atingirem os seus destinos. A Aldeia tem o privilégio de possuir a primeira escola de ensino Básico Integrado do país. Esta escola tem mais de 400 alunos, desde o Pré-Escolar até ao 3º Ciclo do Ensino Básico e tem sido, desde a sua criação em 1973, um pólo de desenvolvimento para toda a comunidade do Senhor da Serra. (Texto adaptado do livro "30 Anos ao Serviço da Educação").

Este espaço é, em termos nacionais, um dos poucos Santuários dedicados ao Divino Senhor no espaço português. Fazem parte deste restrito grupo o Santuário do Senhor Jesus dos Milagres, em Leiria; o Santuário do Senhor Jesus da Pedra em Óbidos; o Santuário do Senhor dos Mártires, em Alcácer do Sal; o Santuário do Senhor Jesus da Piedade, em Évora; o Senhor do Monte, em Boticas; e, por último, o Senhor Santo Cristo dos Milagres, nos Açores.

“A ermida alveja no cimo do monte, numa chapada de sol que a ilumina desde que surge por detrás das montanhas de contornos ainda escuros e indecisos até que se afunda na fímbria alva das areias e espuma da beira-mar” (Cfr. Borges, 1987, p. 207). A descrição poética de Nelson Borges refere-se à povoação que se levanta no alto da serra de Semide e que tem origem na devoção do Santo Cristo. Essa devoção começou num cruzeiro de caminho e desenvolveu-se de modo a vir a transformar-se na grande romaria da actualidade; e o cruzeiro, na grande capela actual.

Parece que Martim de Avô, indivíduo incerto, e sua mulher, Maria Guilhalme - ou Guilherme -, colocaram no local onde se situa a actual “Cruz de Longe” o cruzeiro, do qual fez parte o crucifixo de pedra que se conserva. Logo a partir do seu início a devoção ao Senhor da Serra começou por ser muito forte por parte destas gentes do alto da serra que pediam protecção ao Divino Senhor inclusive para os proteger dos lobos que galgavam a serra assustando as gentes e destruindo gados e culturas. A devoção que ele originou foi causa de uma questão entre o pároco de Ceira e o mosteiro de Semide sobre a jurisdição do sítio da cruz, vencendo este. As monjas mudaram a imagem para ponto próximo da actual cruz ou cruzeiro da povoação, e depois para uma pequena capela que mandaram levantar no lugar da presente.

Essa construção devia ter sido feita no terceiro quartel do séc. XVII. Em 1678 já ali vivia um ermitão e em 1681 existia uma taberna, sinais do começo de povoamento. A capela foi ampliada, possivelmente em 1704, uma das datas que se lê na cruz.

Segundo a tradição local, o Santo Cristo esteve primeiro numa pequena rotunda, quase ao centro do Senhor da Serra, na intersecção da estrada que vem de Miranda e da que vem de Coimbra. O Santo Cristo foi depois colocado numa capela erigida onde hoje se ergue o corpo da principal, em data provável de 1653 ou 1663, mandada edificar pelas monjas de Semide. Houve uma ampliação que está datada de 1704 no sopé da cruz do Santo Cristo.

Como a primeira capela foi apenas ampliada podemos saber do seu tamanho e orientação pela que subsistia quando se construiu a igreja actual. Acrescentou-se uma sacristia ao lado; um arco onde estava a porta da capela; um corpo de capela comprido e estreito na direcção nascente, a que veio a juntar-se, mais tarde, um alpendre, passando de capela a capela-mor. Assim, antes da construção actual, tinha uma abóbada de pedra estucada, onde Gonçalves pintou cenas da Paixão do Senhor. Devia comportar cerca de uma centena de pessoas. O Senhor Cristo estaria, eventualmente, nalgum nicho aberto na parede. Só mais tarde, depois de ampliada, é que teve um retábulo dourado, isto por volta de 1725.

O número de romeiros crescia e com eles a quantidade de oblatas. Era preciso acrescentar a capela. A partir de 1704 ela prolonga-se para nascente e à frente faz-se um alpendre, este já existia por exemplo em 1724. A sul da capela primitiva edificou-se a sacristia com uma janela. Abriu-se um arco na parede voltada a nascente, como já foi referido, e prolongou-se a capela de forma que ficou estreita e comprida. As obras foram-se espaçando no tempo, até 1745. A partir daqui as religiosas viram as suas dificuldades de subsistência aumentar.

A capela antiga possuía três altares: o altar-mor e dois colaterais, que ficavam embutidos na parede. No corpo sul da capela havia, após o arco na direcção nascente, um púlpito que tinha uma porta que dava para a casa dos pregadores. Em frente do púlpito havia na parede norte, uma porta para o arraial. Depois do púlpito ficava o altar de S. Bento e, em frente deste, o de S. Caetano. Um foi para a capela de Semide; o outro, para a de Vale Colmeias. Oposta à capela situava-se um alpendre sustentado por três arcos. Do alpendre havia à direita e à esquerda, pelos dois arcos laterais, duas escadarias de cantaria; pela frente surgia uma parede de cujo parapeito se defrontava um magnífico panorama, tal como ainda hoje (Cfr. Neves, 1920).

A iniciativa do actual templo pertenceu ao bispo-conde D. Manuel Correia de Bastos Pina, que nomeou a primeira comissão administrativa da capela em 1897. As obras começaram pelas hospedarias (1899-1900). As da igreja iniciaram-se em 1901, estando concluído o corpo da capela e a torre em Agosto de 1904. O projecto pertenceu ao Prof. António Augusto Gonçalves, sofrendo algumas modificações no decurso da construção.

A capela é uma obra produto das diversas actividades artesanais que se desenvolveram em Coimbra, no fim do séc. XIX e no princípio do XX, em redor da Escola Livre das Artes do Desenho. O traçado é, ele próprio, uma fusão de elementos neo - góticos e românicos -, com predomínio destes, inspirados nos monumentos de Coimbra.

Tem uma só nave. A torre ergue-se a meio da frontaria, rasgando-se na base o portal e rematando ela em pirâmide. A capela-mor, poligonal, é de tipo nitidamente românico. O retábulo principal, de madeira, flamejante, inspirado no da Sé Velha, é de desenho de António Augusto Gonçalves e foi executado sob a direcção do velho João Machado.

Os altares colaterais pertenceram à demolida igreja da Misericórdia de Coimbra, tendo sofrido uma adaptação: são de colunas torcidas, do começo do séc. XVIII. Ao centro do principal encontra-se a imagem do Santo Cristo, crucifixo de pedra, de tipo setecentista, mostrando na base as indicações: 1704 e R(eforma)do 1862.

O retábulo da direita contém a escultura do Salvador (Cristo ressuscitado) que já lhe pertencia na igreja da Misericórdia. A Piedade do outro lado é de João Machado. O púlpito, seiscentista e torneado, veio da Sé Velha. Os azulejos com a Vida de Cristo foram executados nas oficinas da Escola Avelar Brotero de Coimbra, bem como os vitrais.

Não deverão ser esquecidos numa visita atenta ao Santuário também a sua colecção de ex-votos, tanto os imortalizados em azulejo cá fora de frente para a fachada, como os existentes por detrás do altar principal, pequenos quadros ingénuos e graciosos testemunhando os milagres do Divino Senhor.

O Santuário do Senhor da Serra foi o maior local de peregrinação da beira litoral até ao aparecimento do fenómeno de Fátima, sendo também o único local de devoção ao Divino Senhor nesta parcela do território nacional.

Foi nesta aldeia que nasceu António Arruda Ferrer Correia, distinto reitor e professor universitário em Coimbra na área do direito e que merecerá mais à frente tratamento biográfico detalhado.

Na aldeia do Senhor da Serra existe uma vivenda que foi pertença do poeta João José Cochofel que por lá passava umas temporadas e que foi palco de algumas reuniões clandestinas do Partido Comunista Português, antes do 25 de Abril, quando este estava clandestino.

João José Cochofel nasceu em 1920 na cidade de Coimbra, em cuja Universidade se formou em Ciências Histórico-Filosóficas. Pertenceu à geração neo-realista coimbrã e foi um dos organizadores da colecção de poesia do Novo Cancioneiro (1941), podendo ser considerado o responsável pela valorização de algumas das melhores obras do grupo de escritores a que pertenceu. Colaborou em várias revistas, como Altitude, Cadernos do Meio-Dia, Vértice, Presença, seara Nova, não só como poeta mas também como critico literário e musical. A sua poesia de grande lirismo aflora temas como a natureza e o mundo social e caracteriza-se pela sua simplicidade retórica e forte tom melancólico. Foi director da Academia dos Amadores de Música de Lisboa e da sociedade portuguesa de Escritores. Morreu em 1982, deixando incompleto o Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de teoria Literária, obra que organizou e dirigiu desde o início da sua publicação, em 1971.

A freguesia de Vila Nova

Vila Nova impõe-se como o miradouro do concelho. A Igreja Paroquial tem como orago S. João Baptista. O velho Sto. André, orago da antiga capela do lugar, cujo nome seguiu sempre o da população, desapareceu; ficou o Precursor, talvez em lembrança duma antiga capelinha particular erigida à entrada do povoado fundada em inícios do séc. XVIII, pelo fidalgo Baltazar Arnáo de Queiróz e que depois veio a pertencer à família Paiva Manso. Esta freguesia é recente, tendo sido separada da de Miranda do Corvo, no início do séc. XX, mais concretamente em 1907. Esta sua igreja é a ampliação - na porta 1903 - da antiga capela da povoação, a qual fora instituída por Baltasar Arnau Queirós.

O altar-mor, de talha do princípio do séc. XVIII, com colunas salomónicas, é obra corrente. Os colaterais são refeitos de talhas dos sécs. XVII-XVIII. Fecha o camarim uma tela do Baptismo de Cristo, pintada em 1905 por Abel Eliseu, pintor-decorador. Trata-se do mesmo artista que fez para a capela de Vila Flor outro painel, com o milagre da Senhora da Nazaré. Nas esculturas de madeira ressalta o S. João Baptista, obra corrente do séc. XVIII e a Senhora da Piedade do séc. XIX. Os sinos são modernos. Abaixo desta construiu-se nos anos 40 uma nova igreja mais espaçosa, com uma alta torre central na fachada.

Vila Nova foi também sede da nobreza concelhia na figura de António Pedro de Paiva Manso, falecido em 31 de Maio de 1815, mas que no início do séc. XIX vivia com a sua família à entrada de Vila Nova. A casa foi edificada onde existiu o solar da família Arnaut de Queiróz, que no início do séc. XVIII mandou erigir na parte de trás a capela de S. João Baptista, hoje desaparecida. Na porta do lado poente do edifício, certamente a porta principal, havia um brasão que foi retirado para ser colocado no solar da família em Chão de Lamas onde hoje está, por sinal com erros de heráldica, sobre a porta de entrada.

a) O Santuário de Nª. Sª. da Piedade de Tábuas

A fundação e o fundador da capela, Domingos Pires, estão envoltos numa curiosa lenda de aparições e anjos escultores que pode ser conhecida mais à frente. O lavrador, que era julgado de época recuada, veio o historiador Belisário Pimenta encontrá-lo bem identificado, com a mulher Leonor Eanes e as filhas Eva e Maria Martinho, nos meados do séc. XVI. Os restos artísticos mais antigos confirmam-no igualmente. O santuário foi sede de grande devoção e romaria.

A capela principal encontra-se disposta cenograficamente numa elevação – que teve o nome de Malhadinha – que se destaca numa garganta apertada da serra de Miranda. Como de costume, desenvolveu-se o santuário ao longo do caminho de acesso, por meio de motivos secundários, que formam um todo: capela de S. José, cruzeiro e capela de Santo Amaro, fonte, a capela propriamente dita, ao que juntaram nas vertentes próximas umas capelas-nicho.

A capela de S. José, na saída da povoação e no fundo do vale, parece ter sido instituída pelo padre Baltasar Arnau Queirós. Mostra porta rectangular e óculo sobreposto, tipo do séc. XVII, com ampliação posterior; o retábulo é da segunda metade do séc. XVIII. No começo da encosta está o cruzeiro e ao lado a capela de Santo Amaro. O cruzeiro, coluna sob pedestal, está mutilado pelo tempo, lendo-se ainda no capitel: OS DEVOTOS /DAS... /...N.SORA... / MA.../1596. A fonte era obra rústica, colocada já dentro do souto da encosta.

O edifício da capela da Piedade data da segunda metade do séc. XVI, com algumas reformas no séc. XVIII e adendas posteriores. Um violento incêndio destruiu-o irremediavelmente. Subsiste o esqueleto do alpendre, corpo e capela-mor. Formam o alpendre, dois gigantes angulares e colunas toscanas levantadas em parapeito pleno, a fazerem três vãos adintelados à frente e quatro aos lados; levantando-se sobre os gigantes altas pirâmides de alvenaria. No ângulo interno da esquerda encontra-se o púlpito, para a pregação ao ar livre. A porta rectangular é acompanhada de dois postigos que são já do tipo setecentista. Crava-se à direita dela uma lápide: AQVI ESTA A / CAIXA P(ER)A AS ESM / OLAS DAS OBRAS / DA SENHORA DA / PIEDADE.

“Na capela-mor o tecto é de madeira em caixotões pequenos, pintados de rótulos concheados (...). O retábulo, dourado, de duas colunas e camarim, pertence à segunda metade do séc. XVIII. A escultura da Piedade é de pedra, do séc. XVI renascentista (...). Revestem as paredes azulejos dos sécs. XVIII-XIX, de Coimbra(...). Fecha a capela-mor uma teia de madeira exótica, de balaustres pansados, do séc. XVII(...). O corpo da capela cobre-se igualmente de madeira, aos caixotões, com tirantes de madeira. (...) uma pintura policroma cobre tudo; nos caixotões alastram enrolamentos acantiformes, representando-se no mais próximo do arco a Senhora da Piedade, pintura do séc. XVII . As paredes são revestidas de azulejos, do tipo de grandes rosetas, só a azul, de fabrico de Coimbra. Valoriza-os o letreiro sobre a porta, que ajuda a esclarecer o princípio de fabrico neste centro: ESTA OBRA/MANDARAM FA/ZER OS MORDOMOS/DE NOSA SENHORA/DA PIEDADE DE CO/INBRA NA ERA/DE 1700 ANNOS.”. Este era o relato feito pelo Pe. Nogueira Gonçalves nos anos 40 do século passado. Tudo isto desapareceu, consumido pela tirania do fogo, apesar de todo o cuidado sempre demonstrado pela população religiosa do concelho na sua manutenção.

Há ainda um lavabo, parcialmente destruído, datado de 1679 e assinado Alvres. As casas do eremitão e da confraria são simples, do tipo de janelas de aventais rectangulares. Na madrugada do dia 15 de Novembro de 1998, Miranda ficou mais pobre. O incêndio na capela centenária, destruiu grande parte do seu recheio interior. Após isto a capela encontra-se actualmente a ser alvo de recuperação (Cfr. Gonçalves, 1952).

O Gondramaz

O Gondramaz é uma pequena aldeia de xisto encravada na serra de Vila Nova, cuja origem se perde nos tempos. Com meia dúzia de habitantes fixos, a aldeia é actualmente alvo de um programa de reabilitação por estar inserida na Rede das Aldeias de Xisto. A tipicidade das suas casas e dos seus moradores - de onde sobressai o escultor Carlos Rodrigues - faz deste pedaço de paraíso natural um local a visitar e descobrir.

Longe vão os tempos em que a vida do campo alimentava o dia-a-dia de muita gente. Onde aos primeiros raios de sol, os caminhos de terra batida se enchiam de trabalhadores que erguiam no horizonte as suas enxadas e que transportavam o rosto envelhecido pelo sol. Longe vão também os tempos em que a aldeia era uma comunidade envolta de vida e de burburinho onde todos eram um só.

Com a evolução dos tempos e a busca de melhores e mais dignas condições de vida, a Aldeia foi sendo substituída pela Cidade, e a estas comunidades onde fervilhava gente na missa de Domingo e nos fins de tarde todos se reuniam na mercearia ou no largo da igreja, onde novos e velhos se diluíam numa só manifestação de tertúlia e vida, deram lugar os largos abandonados de conversas, onde aqui e ali se sentam os que ficaram e esperam lentamente que o ponteiro dos segundos passe, ansiando que o Verão chegue e traga de volta aqueles que o vento levou para longe. É assim o Gondramaz!

Começa a subida até ao cimo da montanha. Durante esta, vamo-nos apercebendo de vários pontos de miragem sobre a vila de Miranda do Corvo e das encostas das montanhas de uma beleza rara de vegetação que vai escorrendo e envolvendo a íngreme depressão até ao sopé, terminando numa euforia de verde.

A fauna, esconde-se no embrenhado da flora, mostrando-se aqui e ali de uma forma tímida. Veados e javalis dividirão com o aventureiro os caminhos pedonais que se abrem diante dos seus olhos e que o guiam neste passeio pedestre.

Chegados ao cimo da montanha, deixando para trás a aldeia do Cadaval, abandonada, pinta-se perante os nossos olhos, um quadro feito pelos deuses. As elevações e depressões, as várias tonalidades de verde, toda a paisagem parece não ter fim. Os olhos “enchem-se” perante tanta beleza.

O percurso continua, sobre os caminhos de terra batida, levando-nos à explosão de beleza máxima e ao terminus do percurso: a aldeia do Gondramaz. Ergue-se do solo uma aldeia que de uma forma envergonhada se mostra por detrás da vegetação. A sensação é esmagadora. Todos os sentidos são estimulados. A visão é imaginária. Parece estarmos a caminhar sobre os telhados.

A sinaléctica indica-nos os pontos de referência da aldeia e dá-nos a conhecer os seus segredos. A audição é envolta de um som forte, por uma música de uma pauta escrita pelas asas das abelhas. O cheiro é extasiante, de um odor de verde da natureza. O sabor está envolto no gosto delicioso das castanhas que envolvem o chão.

A aldeia do Gondramaz é um exemplo puro de várias vidas que se perdem no tempo e no espaço. Para além da sua localização, afastada do mundo do século XXI, do corrupio das vidas agitadas, no Gondramaz o relógio parou há muito. Os seus habitantes envelhecidos, alimentam as horas do dia com a refeição da solidão. As suas vidas esquecidas, revividas com a saudade sofrida, lembradas em quadrados de papel ruídos pelos ratos.

O Gondramaz é, tal como afirma Teresa Pereira, o símbolo da adequabilidade ao local, da natureza, da arquitectura popular que, felizmente, se preservou ao longo das gerações. Aqui os únicos cinco residentes vivem da pastorícia e da agricultura, a que, de uma forma tão apaixonada, dedicam a vida e os dias.

Etnografia

Na serra da Lousã não surgiu, até hoje, prova concludente da presença humana em fases do Paleolítico, Mesolítico ou Neolítico. Estes povos primitivos deambulavam em migrações alargadas e a serra nunca terá reunido as condições necessárias para a sua fixação em aldeamentos, mais ou menos permanentes, onde pudessem demarcar em seu redor território explorado de forma comunitária.

Para a Antiguidade começam já a surgir os primeiros indícios de presença humana – covas, espécie de almofariz fixo; mós. Estaremos perante um local frequentado por uma população coeva que habitou, de uma forma mais ou menos sedentária, nas proximidades.

Estes primeiros aldeamentos castrejos poderão ter existido no sopé da montanha e terem sido utilizadas as encostas para a recolha de lenha, madeiras, fruta, caça ou pastos para o gado transumante. “A serra seria a tentação, o chamamento de população das planuras por ser fonte de utilidade, ambiente de mistério, ou recanto de refúgio” (Cfr. Caldas, s/d).

No período de influência romana estão documentados objectos como manilhas em povoações do sopé da serra. Além dos achados arqueológicos, outras inovações se devem àquele povo, especialmente no que concerne à exploração agrária, seja a introdução de novas culturas, como o trigo e a aveia; seja a plantação do castanheiro. Ainda hoje este fruto é essencial aos povos serranos: na construção, pela sua madeira; e na alimentação humana e dos animais. A plantação do castanheiro terá progredido ao longo dos cursos de água e coberto de pomar florestal as encostas mais frescas. A população tenta tirar partido do que, com esforço, a serra lhe pode oferecer: agricultura, mel, castanha, madeira, xisto.

A instabilidade política trazida pelas invasões que lhe sucederam – bárbaros e depois muçulmanos – levou os povos autóctones a trepar à serra ao longo do leito dos rios em busca de terras férteis para a prática agrária. Esta passava pela horticultura, cerealicultura à sombra dos olivais, pastorícia de inspiração ancestral, apoiada nas técnicas da queimada e também a colheita farta da castanha.

No início da Nacionalidade, a Carta de Foral outorgada pelo nosso primeiro rei – um meio de fortalecimento da organização do povo, preparando-o para resistir, por si, a todo o tipo de agressões – desenvolve-se a senhorialização, regulamentando-se os tributos e as garantias dos vizinhos, nomeadamente no que diz respeito à exploração da serra – elemento sempre presente. Referem-se algumas das actividades lá praticadas, deixando implícita a ideia de que, apesar de não povoada, o seu solo era explorado sistematicamente para usufruto comunitário.

Ao contrário da carta de D. Afonso Henriques, o foral novo de D. Manuel, de inícios de quinhentos, apesar de mais completo, não faz referência às actividades e produtos do monte. Poderá isto talvez significar que a serra, ao tempo do primeiro monarca, era terra sem dono, explorada comunitariamente, mas ao longo dos tempos as terras do concelho foram objecto de divisão ou emparcelamento envolvendo o maninho serrano. A explicação para a falta de vestígios de ocupação humana, nomeadamente ao longo dos leitos dos rios, onde o solo era fértil, logo, mais propício à fixação de uma população de economia agro-pastoril, deve-se talvez a processos de assoreamento do leito dos rios e das sucessivas erosões a que essas zonas estão sujeitas.

Presume-se que o povoamento da serra tenha ocorrido ao longo do séc. XVI. A designação de “casal” muitas vezes aplicada na toponímia de aldeamentos serranos, remete embora para uma origem medieval do povoamento. Refere-se a um casal, homem e mulher, com a casa onde se instalam e com a povoação que posteriormente se desenvolve. Pode-se admitir que estes casais que beneficiaram de aforamentos tenham vindo de fora, fugidos da severa sociedade medieval. Outras teorias falam de homiziados, isto é, a serra como refúgio de proscritos. Sabe-se apenas que os privilégios do aforamento, ou do direito enfitêutico, foram suficientes para fixar inicialmente os núcleos de povoamento.

Uma outra teoria quanto ao povoamento das aldeias da serra remete para uma inicial ocupação sazonal (Primavera/Verão). Ter-se-á seguido a fixação da população por volta do séc. XVIII, verificando-se a introdução, lenta e progressiva, de novos géneros alimentares, nomeadamente o milho grosso ou maíz, a batata, o feijão, de proveniência americana, conduzindo à intensificação da cultura de regadio. Aumenta a produção e varia a alimentação, até então baseada na castanha, pouca carne, centeio e o famoso mel de urze.

As casas, construídas ao longo dos anos por pedreiros locais, em pedra xistosa e barro, as padieiras das portas e janelas em madeira de castanho, cobertura em telha com lajes sobre os beirais e as telhas para o vento não as levar, constituem um dos bilhetes de identidade da nossa serra. Eram predominantemente casas pequenas com apenas duas divisões, onde não se dispensava o forno a lenha. É curioso como a aparência das casas é em tudo semelhante ao longo dos tempos, por um lado porque era condicionada pelos materiais e mão-de-obra existente na região, por outro, porque era utilizada a pedra da estrutura destruída para fazer a nova construção.

Era uma vida dura e repleta de privações a daqueles que escolheram viver do que a serra oferecia. As pastagens iam degradando, com o recurso ao gado caprino. A “revolução” do milho, quando subiu do vale à serra não correspondeu às expectativas, “...sedento e faminto, num prodígio de energia frustrada, a crear minguados grãos sob a folha encarquilhada de maçarocas impossíveis.” (Cfr. Caldas, s/d). A degradação da exploração da oliveira e a morte dos castanheiros pela doença da tinta levaram a que para além da agro-pastorícia, se dedicassem a outras actividades. Hoje extinta, a profissão de carvoeiro era comum em qualquer aldeia serrana. O carvão surgiu como a derradeira esperança oferecida pela serra exausta. Era aproveitada a abundância da torga para ser queimada em buracos escavados no solo e depois aproveitar o seu carvão.

Era no rebanho que se empregavam as poucas economias que se amealhava. Os rebanhos eram juntos num só grupo e levados ao pasto pelos proprietários, isto é, por cada dez cabeças de gado iam um dia. Ao final do dia regressavam à aldeia e ao longo das ruas o gado ia-se distribuindo pelos currais. Também a criação de bois foi predominante ao longo dos tempos, pois sendo um animal de tracção, era utilizado no transporte de produtos e cultivo das terras. Animais indesejados eram o lobo que matava o gado e o javali que destruía as culturas. Hoje podemos encontrar com alguma facilidade veados e corços, as “cabras bravas” como lhe chama a população, inofensivos e animadores da paisagem.

No início do século passado ainda existiam moinhos ao longo das ribeiras mas com o tempo foram arrasados pelas cheias e abandonados pela fraca rentabilidade, preço da modernidade. Levavam os cereais nos foles, peles de cabra inteiras e sem grandes cortes, tratadas de forma a ficarem sem pêlo, que serviam de vasilhame.

Estes habitantes da serra montanha nunca se integraram na vida mais farta dos camponeses das planuras não beneficiando de bens fundamentais como abertura de estradas, luz eléctrica ou assistência médica.

A saída destes lugares à procura de melhores condições de vida começou a surgir a partir de meados do séc. XIX com o êxodo para o vale e para a capital. Na transição do século começa a emigração, nomeadamente para o Brasil.

Aldeias serranas como o Gondramaz são ponto de encontro entre os concelhos de Miranda do Corvo e da Lousã e uma referência turística nos caminhos para o Santuário da Senhora da Piedade de Tábuas. Apesar dos poucos residentes fixos, o Gondramaz tem uma animação própria, proporcionada por aqueles que escolhem a pureza e a originalidade da sua paisagem para férias e fins-de-semana (Cfr. Rodrigues, 2000).

Cultura popular:

Evolução da gastronomia: a alimentação em Portugal sofreu grandes alterações desde a Idade Média até aos nossos dias. Todavia houve aspectos em que se assistiu a grandes permanências: desde sempre fomos, e continuamos a ser, um povo de comedores de pão. Este alimento foi durante séculos uma das principais bases alimentares. São inúmeros os relatos da alimentação frugal dos tempos em que à base pão se juntava apenas um naco seco de carne e vinho quando as populações se afastavam até aos campos.

Na alimentação medieval a par do pão está a carne – a de criação e a de caça. No entanto o peixe tinha um papel importante num reino banhado pelo mar e em tempo de preceito religioso. A Igreja durante a Quaresma não permitia que se comesse carne, ovos, queijo e manteiga e todos os seus derivados. O peixe era a base da alimentação nestes dias, podendo ser servido fresco, seco, salgado ou fumado e era acompanhado com legumes e pão.

A trilogia pão, vinho e azeite deram à nossa alimentação a tal conotação mediterrânica que ainda hoje caracteriza os povos do Sul.

Hábitos e produtos: devemos salientar sempre uma das principais características da alimentação da maior parte da população, sem grandes recursos, e que é a frugalidade. Comia-se apenas duas vezes por dia: o jantar, cerca do meio-dia; e a ceia, ao fim da tarde e do dia de trabalho.

Os principais produtos eram aqueles produzidos na horta, ou seja, toda a espécie de hortaliças, frutas e o indispensável pão. A carne estava reservada, como vimos, para dias especiais. O naco do porco retirado da salgadeira onde repousa o animal desmanchado dava algum sabor à forte sopa de legumes. Nestes tempos era vulgar ouvir-se: “A sopa é a tranca da barriga”, uma vez que deixava as pessoas saciadas. Já o conduto, isto é, o segundo prato a seguir à sopa, seria mais raro na generalidade das mesas.

Receitas: são poucos os documentos referentes a receitas. A maior parte da população, analfabeta, não transpunha para o papel os seus pratos, maioritariamente de concepção simples e sem grande variedade de produtos. Devemos ressalvar aqui o caso dos mosteiros, onde monjas letradas e com tempo livre se davam ao trabalho de, por vezes, passar à posterioridade as suas receitas mais representativas. No caso de Miranda do Corvo, e apesar de até hoje não se ter encontrado a receita da Chanfana, existe a receita do doce mais conhecido do Mosteiro de Santa Maria de Semide – a Nabada - que as monjas beneditinas tiveram o cuidado de deixar para a posterioridade.

Comida nos dias de festa: a monotonia alimentar assente no pão e nos legumes era quebrada em dias festivos com a introdução do peixe e, sobretudo, da carne. A carne mais consumida seria sobretudo à base de porco. A que se juntava em dias especiais a cabra e as aves. A Chanfana é, para a nossa região, uma dessas provas, também chamada carne de festa ou carne de casamento. A esta poderemos juntar para Miranda e arredores, a Sopa de Casamento, a canja de galinha (que se dava também para restabelecer os enfermos), os Negalhos e o Arroz doce, rijo e com canela para a sobremesa. Registe-se ainda os folares na Páscoa e as filhós e bolo-rei no Natal.

Dias de enterro: culturalmente, tende-se a afastar cada vez mais o fenómeno da morte da nossa vida corrente. No entanto noutros tempos, talvez até por a morte estar mais presente na vivência e no quotidiano das pessoas, tal facto era levado para dentro das próprias casas. O velório era feito em casa do morto envolvendo, normalmente, a passagem de toda uma noite. Não se comia carne. Para aqueles que insistiam em permanecer era preparado café e, caso fosse Inverno, acendia-se uma fogueira. Apresentam-se as condolências à família directa do morto.

Castanha: este alimento seria uma das bases de acompanhamento das refeições por estas populações serranas, pelo menos até à expansão do consumo da batata. Este alimento, embora sendo conhecido desde a época dos Descobrimentos, tardou a entrar na alimentação quotidiana destas populações, estando durante largos tempos destinado exclusivamente à alimentação dos animais. O seu consumo na alimentação humana só começou a generalizar-se no início do séc. XX.

Da floresta, a par dos castanheiros, havia sobretudo pinheiros, valiosos pela sua lenha e fagulho, sobreiros para extrair cortiça e vegetação arbustiva – o vulgar mato – necessário para a alimentação de certos animais e para manter os currais limpos. O mato transformava-se depois dentro dos currais, pela acção dos excrementos dos animais, em estrume que iria fertilizar as terras agrícolas ainda desconhecedoras dos modernos adubos e fertilizantes.

Porco: eis um dos animais mais criados pela população, difundido em inúmeras receitas de norte a sul do país, se excluirmos as zonas de população judia.

O ritual da matança do porco é repetido desde tempos imemoriais nestas bandas. Mesmo hoje em que, como se sabe, a matança dos animais em casa está proibida por lei, ela se continua a manter nalguns locais.

O dia da matança do porco era um dia festivo. Ao fim de três a quatro meses de criação com base em farinhas e restos da alimentação humana, o animal estava pronto para o abate. Normalmente cedo pela manhã o dono convoca três ou quatro vizinhos para segurar o animal. A estocada final é feita por alguém com mestria e sangue frio para o acto. Posteriormente o animal é queimado com carqueija e fagulho existentes em grande abundância nas matas vizinhas para que, posteriormente, se possa raspar retirando-lhe a sua cobertura pelosa. Depois de convenientemente raspado e lavado inicia-se a desmancha do animal pelas mãos de alguém com mestria para tal.

O animal é dependurado em local frio e seco de cabeça para baixo começando-se por se lhe retirar as vísceras e os órgãos. Também o sangue é aproveitado. Este será consumido acompanhado de alho e azeite, juntamente com broa e vinho. A bexiga do porco era retirada, cheia de ar e dada aos miúdos para jogar à bola. Por fim o porco será desmanchado e colocado na salgadeira – uma arca de madeira com sal grosso – antepassado dos actuais frigoríficos. As mulheres procediam à confecção de enchidos que repousavam, a par do presunto, por cima da lareira da cozinha num fumeiro.

Artefactos: panelas de ferro, colheres de pau, almotolias para o azeite, arcas de madeira para guardar a mercearia ou o milho, salgadeiras para guardar a carne de porco, fumeiros para os enchidos.

Peças em barro como caçoilas, picheiras, moringas, morins, asados, assadeiras, pratos e vasos. Pipas, pipos e dornas para o vinho; cântaros de barro para o azeite; foices, forquilhas, enchadas, para os trabalhos agrícolas; noras e gaivotas para retirar a água dos poços.

O forno é um elemento fundamental nestas populações, sendo possível encontrá-lo em praticamente todas as habitações serranas. Aqui nestas terras tem fundamentalmente dois grandes usos: cozer a broa e preparar a chanfana e os negalhos. Num caso como noutro, depois de devidamente aquecido é fechado com uma tampa de ferro lacrada a toda a volta com barro para diminuir as perdas de calor. Uma folha de couve serrana era colocada por baixo de cada broa para evitar que esta ficasse queimada por baixo. Era costume fazer broas mais pequenas com o que normalmente sobrava da massa, a que davam o nome de tortas. A estas juntava-se depois de cozidas açúcar e vinho tinto, iguaria que toda a família comia e que era sobretudo apreciada pelas crianças. Toma aqui o nome de “Sopas de cavalo cansado”.

O tempo das populações agrícolas regia-se sobretudo pelas estações do ano, mais do que por horas, dias ou meses. São aquelas que marcam o calendário dos trabalhos agrícolas. No Inverno limpam-se as terras, podam-se videiras e oliveiras e consertam-se os currais. Na Primavera lavram-se as terras e iniciam-se as sementeiras: milho, batata, feijão. No Verão é época de regar as culturas e de colher o que se semeou: seca-se a palha nas terras e o feijão e o milho nas eiras, descamisa-se o milho. No Outono é época de fazer as vindimas, apanhar a azeitona e juntar lenha para o Inverno.

Já no que concerne ao espaço de mobilidade das populações ele era obrigatoriamente reduzido. A maior parte da população vivia e morria nunca se deslocando grandes distâncias para fora dos seus lugares. Muitas afastavam-se apenas até onde se ouvia o toque do sino da torre da capela. As estradas eram más, para além de serem perigosas. Teremos obviamente de excluir o caso dos mercadores e vendedores ambulantes que se aventuravam por essas estradas. A estrada real que passa por Miranda ainda é perceptível em alguns dos seus traçados demonstrando uma direcção vinda do lado de Penela por Sul e orientando-se posteriormente para Nordeste abandonando o nosso concelho perto do actual Bairro Novo, antes chamado Cheira e Arneiro.

Gastronomia

Expomos aqui breves considerações sobre a Chanfana, recorrendo aos escritos de Armando Fernandes, consultor cultural e investigador na área da alimentação: “Esta palavra - Chanfana, não é desconhecida das restantes línguas que emanam do latim e, sem qualquer espécie de surpresa seja em espanhol, francês e/ou italiano, o seu significado primacial reporta-se a uma forma ou maneira de preparar alimentos. Vejamos: em Espanhol - Chanfaina: 1. ”Guisado feito de bofes e pulmão picados”; 2. Guisado de carne, morcela ou assadura de porco, num molho espesso feito com azeite, vinagre, miga de pão, amêndoas, alho, pimentão, orégão e tomilho; 3. Guisado que se faz com carne de ovelha e cordeiro”; em Francês: ratatouille, gargotage; Ratatouille, isto é, chanfana, fressura guisada, sarrabulho, guisado desenxabido. Por fim em Italiano: iguaria de fígado com molho; prato ordinário mal cozinhado”.

Pelas referências retiradas das autoridades chamadas dicionários, a pretensão de se situar a Chanfana apenas em Portugal e em determinada região é coisa vã e, se outros significados a palavra tem e tem, malévolos, todos, uma coisa é certa, estamos ante uma preparação culinária tão velha quanto o homem teve necessidade de superar as carestias, já depois de ter descoberto o uso do fogo.

Já Plutarco alude às cabras no seu livro “Sobre a astúcia dos animais” dizendo ser apascentadas com as ovelhas, que sabem distinguir as ervas e entender os gritos que ouvem. Alude também ao facto de os pastores não comerem os cabritos. Daí, o recurso, natural, o de comerem a carne das cabras.

Gayo Plínio Secundo dedica muita atenção às cabras. E, talvez ele nos dê preciosa indicação sobre o hábito de os homens comerem o fígado das cabras. Diz ele a dado passo: ”Contam também que pela noite vêm igual que durante o dia: e que por isso se come o fígado das cabras os que chamam “nictálopes” recobram a capacidade de ver de noite.” Só para temperar este escrito, refiro o facto de a medicina antiga recomendar o sangue de cabra cozida com medula, pois ajudava os atacados pela disenteria. Também recomendava o ataque às doenças dos intestinos, incluindo a disenteria, comer-se o fígado e o baço assados, bem como o sebo do macho, o bode, com pão e tudo o que procede dos rins da cabra, bebendo-se sozinhos e, imediatamente água não muito fria.

Mas deixemos o romano Plínio e recuemos no tempo. Há poucos anos descobriram-se três tabuinhas cuneiformes que podem ser datadas de 1600 a.C., cujo conteúdo são receitas e indicações sobre o modo de comer dos povos que viviam na Mesopotâmia. E nesse receituário aparece um caldo de cabrito, um caldo de carneiro e, como não podia deixar de ser os cabritos eram oferecidos aos Deuses: “(…)e Te ofereço um cabrito irreprovável e digno da tua divindade”, e para umas bodas entre outros animas lá estavam “as cabras e os seus cabritinhos, e fornidos cabritos de larga barba”, tendo sido comidos 14000 cabritos num banquete em honra do deus Asur. Apetece perguntar: e quem comia as cabras? E como eram comidas?

Tendo em conta o estimável papel das cabras em termos económicos, as mesmas só eram consumidas quando já não tinham grande préstimo. A sua carne, tendo um sabor agradável, é muito dura e exala um cheiro muito marcado. Para se amaciar usavam-se temperos fortes e pronunciados, a começar pelo vinho e aguardente, para lhe retirar o cheiro vinham as ervas e as especiarias. Normalmente comia-se depois de estar em marinada, podendo muitas vezes ser consumida seca e fumada. O bode, apesar de o seu cheiro ser muito mais pronunciado, mesmo a roçar a violência, de a sua carne ser coriácea, também era consumido pelas pessoas de poucas posses e muito pobres. Do seu nome derivou a palavra boucherie.

Porque os cabritos rendiam dinheiro e serviam para pagar favores, a cabra e o bode transformavam-se em peças a comer, especialmente, nos dias nomeados, mas a necessitarem de adequado preparo culinário.

E tinha de ser assim, desde sempre os cabritos eram comida de poderosos, ricos e célebres. Ateneu no famoso “Banquete dos eruditos” refere cabritos assados, “a cabeça inteira fervida, aberta ao meio de um cabrito estufado”, deixando a carne de cabra para os desgraçados e os escravos.

Na Idade-Média não se comia tanta carne como se afirma, mas todos gostavam de dela se nutrirem por muitas razões que não entram neste pequeno documento. A cabra utilizava-se para o leite e também a sua pele tinha merecimento. A carne de cabra era seca e fumada a fim de ser consumida na primavera e no verão, já que no inverno as pessoas dedicavam atenção ao porco. (Veja-se o livro de receitas de Sent Sovi e o de Ruperto de Nola).

Também é importante estudar o tratado de cozinha Hispano-Magrebí, segundo um manuscrito anónimo do século XIII.

O formidável e imprescindível livro de Bartolomeo Scappi, cozinheiro privado do Papa Pio V, tem uma receita para se guisar cabra e cinco receitas dedicadas ao cabrito. O famoso cozinheiro diz que a cabra pode ser preparada como o carneiro, ao qual referencia em diversas receitas.”

Os pratos gastronómicos que fazem parte da cozinha original mirandense incluem-se numa herança etnográfica que não surge por acaso, nem de um dia para o outro. Há uma lógica inerente ao seu aparecimento e à sua perpetuação no tempo, nem sempre fácil de deslindar nos difíceis rumos da História.

À justificação de base etnográfica e cultural tendente a justificar porque apareceram tais pratos no nosso concelho e região, poderíamos chamar, fundamentadamente “o ciclo da carne de cabra”, isto é, o aproveitamento quase integral de um produto, valioso em todos os tempos, mais ainda em épocas de crise, por uma população que sempre viveu com grandes dificuldades, mas que soube tirar partido daquilo que a Natureza colocou à sua disposição.

Assim, segundo apontam alguns elementos históricos e etnográficos, a Chanfana teria, eventualmente, surgido no Mosteiro de Semide, instituição religiosa pertencente actualmente à nossa freguesia de Semide, generalizando-se o seu consumo após a 3ª Invasão Francesa, apoiada numa região com tradição na produção vinícola e com uma indústria de transformação de barro ancestral.

Até finais do séc. XIX, todos os agricultores e rendeiros eram obrigados ao pagamento dos foros. Assim, o Mosteiro recebia dos moradores do seu couto, os foros a que estavam obrigados. Galinhas, vinho, azeite, dias de trabalho, cabras e ovelhas, eram formas de pagamento. Durante o mês de Agosto e até ao dia de S. Mateus, as freiras de Semide recebiam as suas «rendas».

Directamente na dependência do Mosteiro e explorado nas suas rendas e abluções pelas monjas beneditinas estava, lá mais ao alto, coroando a serra, o Santuário do Divino Senhor da Serra, de que resta documentação pelo menos desde o séc. XVII.

Muitos dos moradores, porque eram pastores, pagavam com cabras e ovelhas. Os foreiros, compreensivelmente, libertavam-se dos animais mais velhos que já não lhes davam o precioso leite, nem se reproduziam, originando novas crias. Ora, como as freiras não tinham disponibilidade nem meios para manter tão grande rebanho, descobriram uma fórmula para cozinhar e conservar a respectiva carne, aproveitando o vinho que lhes era entregue pelos rendeiros, o louro que tinham na sua quinta, bem como os alhos e demais ingredientes.

Surge, assim, a Chanfana que era religiosamente guardada, ao longo do ano, nas caves frescas do mosteiro. A carne assada no vinho mantinha-se no molho gorduroso solidificado, durante largos meses. Assim a receita poderá ter sido, primariamente, um processo de conservação de alimentos. É inegável, em termos históricos, a contribuição das ordens religiosos no aparecimento de muita da nossa gastronomia. Basta lembrarmo-nos da doçaria conventual.

O vinho tinto utilizado era de grande qualidade, pois só assim a carne ficaria mais tenra. Não se pode deixar de associar a utilização deste liquido ao facto do concelho de Miranda do Corvo, nomeadamente a freguesia de Lamas, onde o Mosteiro possuía inúmeros coutos, ser conhecida pela qualidade do seu vinho tinto “carrascão”, ainda hoje produzido em abundância. O vinho tinto é produzido segundo castas seleccionadas, naturalmente, desde há vários séculos.

Durante a terceira Invasão Francesa, as freiras terão divulgado esta fórmula gastronómica, devido a necessidades imperiosas da própria conjuntura histórica, concretamente, para evitar que os soldados franceses roubassem as cabras e as ovelhas da região. São por demais conhecidos para os estudiosos da História, os depoimentos deixados pelos nossos antepassados mirandenses que viveram tal período. O concelho de Miranda do Corvo e o então concelho de Semide não escaparam aos actos bárbaros então praticados: incêndios, mortes, violações, roubos.

Diz-se, em termos lendários, que quando as tropas francesas circularam pela região de Miranda do Corvo, a população envenenou as águas para matar os franceses. Mas, como era necessário cozinhar a carne habitualmente consumida e, como a água estava envenenada, utilizou-se o vinho da região.

A Chanfana é um prato típico do concelho de Miranda do Corvo, de onde cremos ser originária, que se expandiu praticamente por toda a região centro onde adquiriu várias nuances. É muito apreciada e servida em bastantes restaurantes do nosso concelho. De salientar que constitui o prato «obrigatório» quando decorrem as festas religiosas anuais em Miranda do Corvo, nomeadamente pelo S. Sebastião, em Janeiro, e é ainda hoje imprescindível na ementa dos casamentos, sendo como tal também chamada “Carne de Casamento”.

Assim a gastronomia característica do concelho de Miranda do Corvo nasce com o modo de vida e criatividade das monjas do Mosteiro de Santa Maria de Semide, importante núcleo religioso e administrativo; no contexto político, social e económico da 3ª Invasão Francesa; condicionada pela presença de um complexo industrial de oleiros do barro vermelho e uma boa produção vinícola.

Numa época em que as dificuldades económicas prevaleciam na maior parte da população, tudo tinha de ser minuciosamente aproveitado. Assim, com a carne temos a Chanfana; com o molho e as sobras, a Sopa de Casamento; com as peles (depois de limpas e secas ao sol) faziam-se os “foles” para levar os cereais aos moinhos e o azeite às feiras.

Consta que também os Negalhos remontem a esse difícil período da época da terceira Invasão Francesa, em que as necessidades de sobrevivência e de miséria se acentuaram ainda mais. Estando a rarear a carne, porque os invasores franceses roubavam os rebanhos, a população teve de aproveitar tudo, inclusivamente as tripas dos animais cuja carne – preciosa e agora rara - utilizava na sua alimentação.

Experimentaram, então, cozinhar as tripas segundo a receita da Chanfana e terá dado resultado. Ainda hoje se confeccionam os Negalhos nas casas particulares de Miranda do Corvo e são servidos em alguns restaurantes locais. É um prato típico bastante apreciado.

Há um factor extremamente importante para o sucesso destes pratos, que se prende com as condições de cozedura. Tanto a Chanfana, como os Negalhos são cozinhados em caçoilas de barro vermelho tapadas com folhas de couve. Neste concelho desenvolveu-se uma indústria artesanal de olaria de barro vermelho de que há notícias, pelo menos, desde o séc. XVI.

O forno de lenha, elemento fundamental na cozedura da broa, é previamente aquecido e, depois de fechada a boca, deve ser vedado com barro. Como estes pratos apenas são consumidos no dia seguinte, devem ser mantidos no forno até à hora de serem servidos. Nessa altura o barro é picado para abrir a porta e a caçoila é retirada e colocada sobre as trempes junto à lareira para aquecer lentamente.

Comia-se carne apenas em épocas especiais – festas, casamentos - e os legumes plantados em pequenas hortas, a par do pão, foram, desde sempre, os alimentos de maior consumo pela população portuguesa. Como tal o aproveitamento de um produto tão precioso como a carne tinha que ser total, evitando todo e qualquer desperdício. Assim, comida a Chanfana, com o molho faz-se a “Sopa de Casamento”.

Alguma investigação feita no «terreno» prova a validade da nossa tese. Assim, interrogando algumas pessoas, já de provecta idade, a maioria já a ultrapassar os setenta, estes sublinham que estes pratos eram já conhecidos, pelo menos desde os seus avós. A Sra. Maria das Souravas questionada – de forma indirecta para não condicionar a resposta - sobre como eram os casamentos no tempo dos seus pais, responde a dado passo: “O almoço era constituído por sopa de grão-de-bico ou canja, CHANFANA e arroz doce.” A Dona Emília de Semide é mais taxativa referindo mesmo que: “Na ementa da boda só era utilizada carne de cabra: canja, sopa de casamento, arroz de fressura das cabras, massa guisada com carne, chanfana e negalhos.”

Era tradição dar aos convidados o almoço no dia seguinte ao casamento, e como já não havia carne suficiente, com o molho fazia-se a dita sopa e enfeitava-se com os restantes pedaços de carne. Trata-se de um aproveitamento óptimo do molho da chanfana, que nunca é totalmente consumido. Como é muito saboroso e rico, não só em gordura mas também nos sucos de carne, seria uma pena desperdiçá-lo. Tal como a Chanfana, este prato é cozinhado em recipiente de barro vermelho para depois ir ao forno apurar. A sopa acaba por ser o fechar do ciclo de aproveitamento da cabra.

Em nenhum outro concelho se assiste a um aproveitamento total de um produto, como a cabra, traduzido em diferentes receitas gastronómicas, como aqui no concelho de Miranda do Corvo. Da cabra, começa-se por aproveitar o leite, rentabilizando-se igualmente o nascimento das suas crias. Quando esta envelhece, com a sua carne faz-se a Chanfana; com as suas tripas e bucho confeccionam-se os Negalhos, que evoluíram para petisco apreciado; com as sobras da Chanfana e o molho desta dá-se ainda lugar à confecção da Sopa de Casamento. Engenho e arte de um concelho, quase milenar, que soube fazer das dificuldades de vida, vantagens; que soube, com a sua sabedoria tirar partido do que lhe era oferecido.

O Património de uma região, seja ele de que categoria for, deve ser sempre preservado, de forma a assegurar a sua existência. Desta forma, o património gastronómico deve continuar a existir à nossa mesa, fazendo-nos recordar os seus sabores, ligando o presente ao passado e cuidando sempre para que tal herança, legada pelos nossos antepassados, nunca se perca no futuro, nem seja desvirtuada.

Receitas de pratos à base de Carne de Cabra Velha:

CHANFANA

Ingredientes: carne de cabra velha; vinho tinto; alho; louro; sal.

Confecção: corta-se a carne aos bocados, que se colocam numa caçoila de barro. Tempera-se com sal, cabeças de alho inteiras, colorau, pimenta e louro. Cobre-se com vinho tinto. Vai ao forno de lenha, previamente aquecido. Durante o tempo em que a Chanfana está a assar, normalmente cerca de 4 horas, a boca do forno deve manter-se completamente vedada com barro. Geralmente, a Chanfana confecciona-se na véspera de ser consumida. Assim, deixa-se ficar no forno até à hora de ser servida. Nessa altura, o barro é picado para se abrir a porta do forno. Serve-se, geralmente, com batata cozida e grelos.

SOPA DE CASAMENTO

Ingredientes: pão; couve lombarda; carne e molho da Chanfana.

Confecção: começa-se por colocar pão rijo partido aos bocados, no fundo da caçoila, até determinada altura. Seguidamente colocam-se as couves que estiveram previamente a cozer. Estas couves, propositadamente ainda mal cozidas, são colocadas, sem escorrer, por cima do pão. Seguidamente, juntam-se os bocados de chanfana desfiados e por fim um pouco do molho da mesma. Leva-se de seguida ao forno e a sopa acabará de cozer no próprio molho.

NEGALHOS

Ingredientes: bucho de cabra cortado aos bocados grandes; tripas e bucho de cabra cortados em bocados pequenos; vinho tinto; cabeças de alho inteiras; sal; louro.

Confecção: lavam-se bem o bucho e as tripas e deixam-se a apurar com limão e sal durante algumas horas. Dentro de cada bocado de bucho grande colocam-se bocadinhos de tripas e de bucho cortados, temperados com sal, colorau e salsa. Seguidamente faz-se uma espécie de «bola» que se fecha, atando-se com uma tripa fina ou, mais comum, cosendo-se com linha. Seguidamente os Negalhos são colocados nas caçoilas. Cobrem-se com vinho tinto, cabeças de alho inteiras, sal, colorau e louro. Vão ao forno de lenha, previamente aquecido e servem-se simples ou com batata cozida.

CHISPE

Ingredientes: perna da cabra; alho; sal; piripiri em vagem ou em pó; azeite; vinho branco; folhas de louro.

Confecção: para preparar esta receita à base da perna da cabra, envolva numa pequena tigela de barro vermelho os seguintes ingredientes: alho esmagado, sal, piripiri em vagem ou em pó e um fio de azeite. Após isto barre a perna com o preparado. Numa pingadeira de barro coloque a peça de carne assim preparada, regando-a com vinho branco e sobre este, coloque umas folhinhas de louro seca. Vai ao forno de lenha previamente aquecido cerca de 1 hora e trinta minutos. Sirva com batatinhas assadas e grelos.

Arroz Doce

Não constituindo uma especialidade exclusiva da região, é sobremesa obrigatória nas bodas de baptizado e casamento. Algumas semanas antes da cerimónia de casamento e num ritual hoje perdido, o arroz doce era oferecido aos familiares e amigos como cartão de participação e convite. Geralmente entregue pelas noivas, as travessas eram transportadas em tabuleiros ou açafates cobertos com belos panos de linho confeccionados nos teares da região. Ao fazerem a devolução das travessas, os convidados entregavam também os seus presentes de casamento. O arroz doce tradicional desta região deve ficar bastante consistente e, para ser servido, é cortado com uma faca. Talvez porque, assim, se podia distribuir mais facilmente por todos quantos, não sendo convidados, apareciam no dia da cerimónia à porta dos noivos

Ingredientes: 250 g de arroz, 1 l de leite, 300 g de açúcar, 1 limão, canela em pó

Confecção: coze-se o arroz em água com umas pedrinhas de sal. Coloca-se o leite ao lume com o açúcar e a casca de limão cortada fininha e, logo que o arroz esteja a meio da cozedura, deita-se sobre ele o leite, que também deve estar a ferver. Deixa-se cozer bem e serve-se em travessas polvilhado de canela.

Doçaria Conventual do Mosteiro de Semide

Bolos de Rolão

“Rolão” é a parte mais grossa e escura da farinha que a peneira retém na sua rede. Dadas as características do rolão, não parece muito provável a confecção de bolos apenas com este produto. Presumimos, pois, que a designação destes bolos resulte do facto de a farinha utilizada não ser peneirada incluindo, portanto, o rolão.

Hoje já ninguém conhece estes bolos pelo seu antigo nome. Segundo informação colhida em Semide, os actuais “patacões” serão os sucedâneos dos bolos de farinha de milho que outrora se faziam no mosteiro.

Os bolos de rolão eram um produto pobre nos ingredientes e de confecção rápida. Dizem os mais idosos que muitas vezes supriam a falta de pão ou de boroa.

A distinção entre bolos de rolão grosso e bolos de rolão fino relaciona-se com a textura do próprio rolão.

Ingredientes: farinha de milho (uma colher de sopa por bolo), água, açúcar amarelo, canela

Confecção: faz-se uma massa consistente misturando a farinha com água e umas pedras de sal. Em azeite bem quente deitam-se colheradas desta massa, que se deixa fritar. Os bolos polvilham-se com uma mistura de açúcar e canela.

(Receita dada pelas Senhoras D. Leonor d’Assunção e D. Maria da Conceição Lopes de Castro)

Creme frito das freiras

Ingredientes: 100 gr de farinha, 5 ovos inteiros e 2 gemas, 0,5 l de leite

Confecção: juntam-se e misturam-se todos os ingredientes e leva-se a mistura a ferver cerca de oito minutos. Deita-se o creme num tabuleiro e deixa-se arrefecer. Corta-se, então, em palitos que se passam por pão ralado e se fritam em manteiga. Poderão polvilhar-se com açúcar.

Fartes

Os “fartes” ou “fartens” constituem uma especialidade que nos aparece em diferentes receituários conventuais assinalando, por vezes, uma ou outra originalidade. Em nenhum caso, porém, é alterada a essência do produto. É uma receita curiosa e algo exótica onde se cruzam o amargo e o doce.

O “Livro de Cozinha da Infanta D. Maria” e um manuscrito conventual datado de 1743 incluem receitas de fartes ou fartens, sendo a do primeiro mais complexa na execução. A que se segue corresponde a uma versão que não trairá a que passou pela cozinha do mosteiro de Semide.

Ingredientes:4 Kg de açúcar, 2 Kg de amêndoas, 500 gr de cidrão, 125 gr de pão ralado, cravo, canela, erva doce, gengibre e pimenta q. b.

Confecção: leva-se o açúcar a ponto de fio e juntam-se as amêndoas peladas e lascadas, o cidrão cortado em pequenos pedaços e os aromas. Deixa-se ferver um pouco. Retira-se do lume e acrescenta-se o pão ralado. Coloca-se a massa num prato para esfriar. Fazem-se, então, os fartes que se modelam com manteiga e açúcar e vão ao forno em tabuleiro.

Nabada

Verdadeiro “ex-líbris” do Mosteiro de Semide, é uma das receitas conventuais mais antigas. Este é um dos casos em que um produto natural do meio e a criatividade se cruzam tornando possível um doce que surpreende pelo ingrediente que lhe dá nome. De facto, nas terras férteis do vale de Semide produzem-se nabos que, pela sua qualidade, sempre foram preferidos nos mercados de Coimbra.

Conhecem-se versões com algumas mas pouco significativas diferenças. Eurico Gama diz ter encontrado a receita num papel avulso “de há uns bons duzentos ou trezentos anos.” Acrescenta, ainda, que a nabada era conservada em covilhetes ou taças que deviam ser introduzidas “num forno depois de estar um dia sem cozer, que só assim fica segura para não humedecer por cima”.

Originariamente este doce era dado a convalescentes, como fortificante, e só mais tarde passou a ser servido como sobremesa. Hoje está pouco implantado na comunidade local devido, certamente, ao demorado tempo de confecção. Mas é, sem dúvida, a especialidade conventual de Semide que perdurou na memória colectiva.

Ingredientes: 1 Kg de cabeças de nabo, 500 gr de açúcar, 50 gr de miolo de amêndoa, água q. b., sal q. b.

Confecção: escolhem-se nabos muito bons e doces que se descascam e cortam às rodelas finas. Colocam-se em água com um bom punhado de sal. Durante oito dias muda-se a água à qual se junta sempre a mesma quantidade de sal. No oitavo dia muda-se apenas a água, isto é, não se lhe junta o sal.

Cumprida esta operação, cozem-se os nabos e escorrem-se muito bem. Pisam-se num almofariz tendo o cuidado de retirar os fios e partes duras. Pesa-se o puré obtido e igual quantidade de açúcar. Regra geral, 1 Kg de nabos dá 500 gr de puré.

Leva-se o açúcar ao lume com um copo de água e deixa-se ferver até fazer ponto de cabelo. Juntam-se, então, o puré dos nabos e as amêndoas peladas e raladas. Deixa-se que o doce ferva mexendo sempre até descolar do fundo do tacho, como a marmelada. Coloca-se o doce em tigelas e cobre-se com papel vegetal embebido em aguardente.

Nógado

O Mosteiro de Santa Maria de Salzedas, da Ordem de Cister a partir de 1196, produzia um doce semelhante ao “nógado” de Semide, o “torrão real”. É mais rico porque na sua confecção se utilizam muitos ovos e amêndoa.

Ingredientes: 300 gr de amêndoas, 250 gr de açúcar, sumo de limão q. b.

Confecção: alouram-se, no forno, as amêndoas que, depois, se cortam em fatias muito finas. Deita-se, num tacho, o açúcar com o sumo de limão, leva-se ao lume e, quando o açúcar estiver derretido, juntam-se as amêndoas. Mexe-se esta massa até ficar amarelo-torrado.

A massa obtida coloca-se sobre uma tábua untada com manteiga e estende-se com a ajuda de um limão. Quando a temperatura da massa o permitir, dão-se-lhe as formas desejadas. O nógado deve ser servido uma ou duas horas depois de moldado.

Pão-de-ló com amêndoas

Este pão-de-ló, que a tradição de alguns conventos conservou na sua doçaria, não tem qualquer semelhança com o bolo que hoje recebe a mesma denominação. Trata-se, antes, de uma “massa” que, depois de cozida, é cortada em “talhadas”.

O “Livro de Cozinha da Infanta D. Maria” e o já referido manuscrito de 1743 registam receitas muito semelhantes, quer na confecção quer nos ingredientes utilizados.

Ingredientes: 450 gr de amêndoas, 1125 gr de açúcar, água-de-flor q. b.

Confecção: juntam-se as amêndoas mal pisadas ao açúcar em ponto forte e misturam-se muito bem. Leva-se a mistura a lume brando, mexendo sempre. Está pronta quando, colocando um pouco desta “massa” num prato, ela despega do mesmo. Coloca-se, então, num tabuleiro untado, estendendo-se com uma colher para que não fique “basto”. Vai ao forno e corta-se em talhadas.

Queijo doce

Ingredientes: 1 Kg de açúcar, 1 pires bem cheio de queijo ralado, 4 gemas

Confecção: leva-se o açúcar a ponto de pasta e junta-se o queijo ralado. Acrescentam-se as gemas e deixa-se cozer até tomar ponto novamente. Deita-se o doce numa compoteira, podendo conservar-se algumas semanas.

Súplicas

Outros mosteiros produziram bolos secos muito semelhantes às “súplicas” de Semide, quer nos ingredientes e suas quantidades, quer na confecção.

Assim: O Mosteiro de S. Mamede de Lorvão, cuja fundação remonta a meados do século VI e que, a partir do séc. XIII, passou a mosteiro feminino com obediência a Cister, fazia os “derriços”. O Mosteiro de S. Martinho de Tibães, beneditino a partir de 1100 mas com fundação anterior a 1071, produzia os “tufões”. O Mosteiro de Santa Maria de Fiães, da Ordem de Cister, fazia as “ternuras”. O Mosteiro de S. Pedro das Águias, cisterciense, confeccionava os “tarecos”.

Ingredientes: 4 ovos inteiros, 8 gemas, 400 gr de açúcar, 500 gr de farinha, 1 colher de sopa de canela, raspa da casca de um limão

Confecção: batem-se os ovos inteiros e as gemas com o açúcar até obter uma massa esbranquiçada. Junta-se a canela, a raspa de limão e a farinha. Mistura-se tudo muito bem e deita-se a massa em forminhas untadas com manteiga e polvilhadas com farinha. Vão ao forno a cozer.

Talhadas

Ingredientes:500 gr de açúcar, 14 gemas, 100 gr de farinha de trigo com fermento, 250 gr de amêndoa, 100 gr de doce de cidra ou cidra cristalizada, 1 colher de chá de canela

Confecção: leva-se o açúcar a ponto de pasta e juntam-se os ovos, a farinha, a canela, a amêndoa ralada e a cidra que, se for cristalizada, será cortada em pequenos pedaços.

Coloca-se a mistura em tabuleiro untado com manteiga e polvilhado com farinha. À saída do forno corta-se em talhadas que se polvilham com açúcar e canela (Cfr. Osório, op. cit.).

Festas e romarias:

Romarias:

- Romaria de Nossa Senhora da Piedade de Tábuas (Domingo após 8 de Setembro);

- Romagem ao Divino Senhor da Serra (15 a 22 de Agosto);

Festividades cíclicas:

- Festa do Senhor dos Passos, no período da Quaresma, de dois em dois anos na vila.

Lendas:

“Mira e Anda”

A lenda não é original, nem sequer no território português, encontrando-se variantes lusas, em Espanha e até além Pirenéus.

A estória trata do encontro fortuito do cavaleiro cristão com a dama muçulmana – podendo suceder o contrário - que o admira do alto da torre do castelo muralhado. Perante o perigo que corre o admirador, a dama implora-lhe que prossiga a sua caminhada, lançando-lhe as palavras “Mira e Anda”. A junção fonética das duas teria dado origem à palavra Miranda num registo que, obviamente, não passa de uma criação simbólica sem qualquer base científica mas que vale como imaginário das gentes mirandenses que a repetem desde sempre. Na memória colectiva ficou ainda esta quadra, muito bem aproveitada para uma composição elaborada por Wilson Paulo: “Diz a lenda mira e anda / Foi alguém que aqui passou / Deste nome não gostou / E mudou-o p’ra Miranda”.

“Sra. da Piedade de Tábuas”

“Domingos Pires era um rico lavrador, senhor de muitas terras d’estes sitios, e tinha muitos gados.O sitio onde se edificou a capella da Piedade tinha antigamente o nome de Malhadinha, e a elle vinha Domingos Pires esperar o regresso dos seus gados.

Diz a lenda que a Senhora appareceu a este virtuoso lavrador, por varias vezes, sobre um penhasco, no referido sitio da Malhadinha.

Tratou logo Pires de edificar, no mesmo sitio, uma casa á Senhora, sob o titulo de Senhora da Piedade, e depois de construida a capella, foi a Coimbra, onde então havia bons esculptores, para encommendar a imagem, representando o trance doloroso em que tinha seu divino filho morto nos braços.

Chegou á cidade, ao convento antigo de Santa Clara, que estava junto á ponte, e ali se foi pousar a uma casa, que devia de ser hospedaria.

Pouco tempo depois de aqui chegar, entraram dois formosissimos mancebos, que perguntando-lhe o motivo da sua ida a Coimbra, e sabido por elles, disseram a Pires que eram esculptores, e que se elle lhes quizesse encommendar a factura da imagem, não ficaria descontente; e que mesmo tinham já feito algumas imagens, que lhe trariam para examinar, ao que Pires accedeu.

No dia seguinte chegaram os dois esculptores com uma perfeitissima imagem da Santissima Virgem da Piedade, que mais parecia obra de anjos que de homens, e exactamente similhante á que lhe tinha apparecido na Malhadinha.

Ficou Pires sobremaneira alegre e satisfeito, sem querer ver mais nenhuma imagem, perguntando logo quanto esta custava. Disseram os mancebos que ficasse com a imagem, e no dia seguinte viriam tratar do ajuste; mas não vieram e Pires os andou buscando dois dias pela cidade, sem d’elles poder obter a menor noticia, nem na hospedaria houve quem os visse entrar ou sahir.

No fim de dois dias de buscas infructiferas, assentou Pires que os dois pretendidos esculptores eram anjos que lhe tinham dado a imagem, e tratou de a levar para a sua capella, para o que fretou um barco, e a levou pelo Mondego acima, até ao logar da Ceira, e ahi a collocou em um carro seu, levando-a para casa, até se concluir o seu altar.(...)” (Cfr. Leal, 1875, p. 327).

Indústrias tradicionais: para além da olaria de barro vermelho do lugar do Carapinhal, freguesia de Miranda do Corvo, já aludida, existiram diversas indústrias cerâmicas, como a de António Simões & Filhos, Lda., na Av. Arménio da Costa Simões ou a Cerâmica José Pedro & Filhos, o conhecido “Zé da Laura” no Arneiro, actual Bairro Novo.

Rendas: no séc. XII foi fundado, em Semide, um mosteiro das religiosas beneditinas, onde segundo a tradição se executaram rendas mais tarde usadas nas festas religiosas, não só para ornamentar os altares mas também para as vestes e paramentos. Nesta povoação existem ainda rendeiras que trabalham em suas próprias casas havendo uma ajuntadeira que recolhe os trabalhos para posterior venda. Esta tradição da ajuntadeira tem passado de mães para filhas, assim como os desenhos que, de geração em geração, vão sendo doados como herança. As rendas são hoje executadas em fio de algodão muito fino, preso ao ombro num pequeno búzio, mais tarde ganhando o nome de “rendas engomadas“, já que, depois de prontas, levam um banho de goma, que não só lhes dá maior durabilidade mas também as torna mais abertas.

Cestaria: com o acentuado decréscimo da actividade agrícola, também esta forma de artesanato entrou em franco declínio, já que era aquela que absorvia quase toda a produção cesteira. No entanto esta arte – que consta do entrelaçamento de matérias-primas de origem vegetal (castanho, acácia, vime e outros) – ainda é visível nos lugares do Torno, Cardeal e Casal das Cortes, aldeias da serra de Vila Nova. É uma actividade artesanal atraente e de grande destreza manual que desenvolve, ao mesmo tempo, o espírito de observação e o sentido de tacto. É visível ainda em lugares das freguesias de Vila Nova e Rio de Vide, como foi dito.

Latoaria: é uma actividade artesanal que, através da produção de objectos como sejam funis, almotolias, alcatruzes, candeeiros de azeite, ladras e outras mais, responde a necessidades do quotidiano comum. A folha de Flandres, a folha de zinco, a folha de alumínio e a chapa zincada são as matérias-primas mais utilizadas. As ferramentas e utensílios usados são os seguintes: bigorna, fieira, prancha, compasso, ferro de soldar, tesoura, talhadeira, bitola, lima, ponteiro, martelo de pena e bola, furador, maço de madeira, riscador de metal, escala metálica. O aparecimento de outras matérias-primas (por exemplo, o plástico) trouxe a decadência desta actividade artesanal. Encontra-se, sobretudo, nas freguesias de Miranda do Corvo e Lamas.

Tecelagem: ganha de facto consistência o pensamento de que foi a presença árabe no nosso país que originou a tecelagem. É de facto notória a semelhança entre os teares persas e os que existem na nossa região. A tecelagem desta região é a chamada tecelagem de Almalaguês, a qual, se diferencia da chamada tapeçaria regional de Coimbra. A “Tecelagem de Almalaguês” é uma tecelagem bordada em puxados e executada exclusivamente em fio de algodão. A tecelagem encontra-se nas freguesias de Miranda do Corvo (rendas, tapeçaria, colchas de trapos), Lamas (tapeçaria, rendas, bordados), Rio de Vide (bordados, rendas, tapeçaria) e Semide (rendas, bordados).

Tanoaria: sem dúvida ligada a uma região desde sempre produtora de vinhos, é possível encontrar ainda alguns resquícios desta actividade na freguesia de Lamas.

Escultura: a figura de Carlos Rodrigues é, por si só, motivo mais que bastante para conhecer a sua obra, projectada já em todo o país e além fronteiras aproveitando ainda para conhecer essa bela aldeia serrana que é o Gondramaz na freguesia de Vila Nova.

Jogos tradicionais:

Jogo do pião: o pião era um dos brinquedos preferidos da pequenada. Dentro de um circulo encontravam-se os piões dos adversários que nós, através do lançamento do nosso, pretendíamos afastar daquele espaço, tentando acertar-lhes. Acontecia muitas vezes, com tal acto, rachar os piões dos colegas. O hábil manejamento do pião também era algo de que nos orgulhávamos de mostrar tentando evidenciar a nossa destreza manual. Um dos pontos fortes consistia em conseguir pô-lo a rodar com bastante força para seguidamente, na continuação do seu movimento, pegá-lo e «adormecê-lo» na palma da mão.

Jogo do prego: delineava-se uma área, normalmente um grande círculo, em terreno relativamente mole. Depois, cada jogador, na sua vez, munido do seu prego (altos, de barrote) começava por conquistar um «território». Podia ir avançando lançando o prego e criando uma linha imaginária. A distância entre cada lançamento nunca podia ser superior ao tamanho do pé do jogador. Sempre que o prego não espetasse no terreno, o jogador perdia a sua vez e dava-a a um dos adversários. Ganhava quem conquistasse a totalidade do círculo previamente definido.

Jogo do mata: definiam-se três linhas onde estavam, respectivamente, um indivíduo da equipa A (o morto), vários jogadores da equipa B, jogadores da equipa A e o «morto» da equipa B. Circulando uma pequena bola de lona entre os dois campos com a mesma letra, tentava-se lançar a bola contra a equipa adversária e «matar», isto é, acertar em um dos jogadores adversários que iria, após isso, fazer companhia ao «morto».

Jogo da macaca: o jogo consistia em atirar a malha (objecto de forma achatada, utilizado para jogar) para dentro dos quadrados, seguindo-se sempre uma ordem: cabeça (pescoço), braços, barriga e pernas. Sempre que se falhava, dava-se a vez a outro jogador. Isto ia-se fazendo até chegar às «pernas». O jogo continuava atirando-se a malha de costas e finalmente com ela em cima do pé.

Jogo da corda (1): jogo, sobretudo do agrado das raparigas, que consistia em saltar sobre uma corda em movimento, evitando tocar-lhe. À medida que o jogo ia decorrendo aumentava o grau de dificuldade dos jogadores, elaborando manobras mais difíceis e aumentando a velocidade de circulação da própria corda.

Jogo da corda (2): estabelecida uma linha limite, duas equipas, compostas por vários elementos, agarram uma corda. O objectivo do jogo é tentar «puxar» para o seu «território» a equipa adversária.

Pau de sebo: erguia-se um pau com uma certa espessura num espaço aberto, colocando-lhe sebo (gordura animal, normalmente de porco) que o tornava extremamente escorregadio. Quem o conseguisse subir ganharia o prémio que estivesse na sua ponta.

Jogo da porca: para jogar é necessário uma pinha e cada elemento munir-se de um pau. Era jogado por rapazes, geralmente durante a Quaresma. No chão fazia-se uma poça – o nicho da porca – à volta do nicho cada elemento do jogo fazia um buraco. Para iniciar-se o jogo punha-se a pinha no nicho da porca, o objectivo do jogo seria tirar a pinha com o pau. Aquele que fosse mais habilidoso e conseguisse, tinha que correr para o seu buraco e pôr lá o pau, sob pena de um adversário ser mais rápido e ocupar o seu buraco, se isto sucedesse o que tirou a pinha do nicho perdia.

Jogo do frade: começa-se o jogo colocando três paus ao alto que podem ser ramos de uma árvore. Os paus são colocados formando uma pirâmide que se assemelha ao capuz de um frade e daí o seu nome. Podem jogar dois jogadores. Um é colocado ao pé do frade e o outro a uma distância a determinar. O jogador que está a uma certa distância tem uma malha (pedra do rio e de forma achatada e redonda) que deverá atirar para derrubar o frade, mas antes diz: Quem derruba o frade? O outro responde: Está cá gente! O primeiro pergunta novamente: Quem o derrubou? E o outro responde: Ficou todo contente. Dito isto atira a malha. Se derrubar o frade, foge e o outro vai atrás dele tendo que o agarrar e trazer às costas até ao pé do frade. Depois trocam e começa novo jogo.

Jogo do bicho: material necessário – botões ou moedas de tostão, um taco de madeira ou um carrinho de linhas vazio, um pataco (moeda antiga de pouco valor), na ausência do pataco um botão. Jogado geralmente por rapazes na época da Quaresma, altura em que havia poucas distracções. Cada elemento do jogo munia-se de um pataco e botões ou tostões. Colocava-se o bicho (taco de madeira) a uma distância considerável dependendo da idade dos elementos do jogo, cada um atirava o seu pataco ao bicho para se apurar o rei (o primeiro elemento a jogar, aquele que conseguisse ficar mais perto do bicho seria o rei). Cada jogador punha um botão em cima do bicho e na sua vez atirava-se o pataco de forma a atingir o bicho para que os botões caíssem. Aquele que conseguisse iria medir a distância entre o pataco e os botões e entre o bicho e os botões. Aqueles botões que estivessem mais perto do pataco pertenciam ao jogador (dono do pataco), os que estivessem mais perto do bicho eram deste e o jogador continuava até não haver botões. Ganhava o elemento que obtivesse maior número de botões.

Jogo do rico rico chaco: uma criança sentada e outra de joelhos com a cara escondida no colo da primeira. A que está sentada, batendo com a mão nas costas da outra, diz:

Rico rico, rico chaco

Quantos dedos estão no ar

Se disseres dois ou três

Não perdias nem ganhavas

Rico rico, rico chaco

Quantos dedos estão no ar?

A criança que tem a cara escondida no colo tem de adivinhar quantos dedos a outra pôs no ar. Quando adivinhar, trocam de posição. Jogava-se na escola.

Jogo da bichinha: todos em pé a andar de volta e um a apanhar. O que anda a apanhar tenta agarrar os outros que para se livrarem têm de se baixar. A criança que anda a apanhar não se pode baixar.

Corridas de sacos: cada jogador, com a parte inferior do corpo dentro de um saco, tenta alcançar primeiro que os outros uma meta predefinida.

Jogo do botão: para jogar ao botão era necessário um fito (pedra pontiaguda em forma de triângulo), uma malha para cada jogador e botões. Primeiro determinava-se a ordem de jogada. Depois colocava-se o fito a certa distância e cada jogador colocava o botão em cima do fito. Pela ordem estabelecida, cada jogador tentava derrubar o fito. Os botões pertenceriam ao jogador cuja malha ficasse mais próxima do botão, desde que o fito não estivesse mais próximo do botão. Neste caso jogaria outro jogador, tentando aproximar a malha do botão ou botões ainda não apanhados e assim sucessivamente.

Jogo do arranca-te nabo: as crianças colocam-se em filas aninhadas e com as mãos na cinta formando «asas» com os braços. Vem uma criança por detrás e tenta «arrancar» puxando pelos braços, uma a uma, as crianças aninhadas que cada uma por sua vez faz força para não ser arrancada. A criança que tenta arrancar os nabos diz: - «Arranca-te nabo que já estás criado».

Jogo do divino machucar: jogam dois jogadores. Um está agachado. O outro coloca a mão atrás das costas deste e levanta por exemplo três dedos e pergunta-lhe: - Quantos dedos estão no ar? Ele responde e se não adivinhar ele diz: - Se dissesses quatro não perdias nem ganhavas, ao divino machucar quantos dedos estão no ar? E repete-se a jogada até adivinhar.

O arraiado: tira-se à sorte a ver quem é que vai «dormir», depois todos se vão esconder. Enquanto a criança vai «dormir» ao arraiado conta até 10. No final vai procurar os outros e diz: «Rôrô, carrapeta já aqui vou!» Sai e vai a correr procurar as outras crianças. A criança que for vista primeiro vai dormir. Os que baterem com a palma da mão no arraiado safam-se.

Cabra-cega: um grupo de crianças formava uma roda. No meio e com os olhos tapados com um lenço e com um pau na mão estava outra criança que era a cabra-cega. Colocava-se um ovo choco no meio. A cabra-cega tinha de com o auxílio do pau partir o ovo choco.

Jogo das pedrinhas: com um pau de giz faziam um círculo no chão e aí dispunham as cinco pedrinhas. Apanhavam a primeira pedra e as seguintes eram apanhadas enquanto se atirava ao ar a que se tinha na mão. Primeiro era apanhada na palma da mão, depois com as costas da mão.

Jogo da péla: jogo juvenil jogado por rapazes e raparigas com uma bola de farrapos que se chamava péla. O jogo consistia em atirar a péla a um caixote que se encontrava a uma distância aproximada de 50 metros. Quem acertava no caixote ganhava e saía do grupo. O último a ficar perdia.

Chincas: era com cinco pedrinhas. Com uma mão deitávamos a pedrinha ao ar e tentávamos apanhar as que estavam no chão a tempo de apanhar a que tínhamos deitado ao ar. Andávamos sempre à procura das pedrinhas mais redondinhas. Guardávamos as pedrinhas no bolso da bata e quando perdíamos alguma ficávamos muito tristes.

Jogo da pitorra: joga-se com uma espécie de peão feito em madeira. Em cada face do pião estão inscritas iniciais: R-rapa; T-tira; D-deixa; P-põe. Era jogado com botões que muitas vezes se arrancava do vestuário ou então com feijões. Os botões eram em número igual para todos e previamente combinavam quantos punham e jogava-se consoante a letra que saía. O jogo terminava quando um jogador ficava com os botões todos.

Jogo da condessa: de um lado está uma menina (a Condessa) com as filhas, que lhe seguram o vestido, formando roda, do outro lado está o cavaleiro que era uma menina.

O cavaleiro vai pedir uma filha à condessa e diz:

Ó Condessa, ó condessa

Ó Condessa de Aragão

Venho pedir-te uma filha

Das mais lindas que aqui estão

A Condessa responde:

Minha filha não a dou

Nem por ouro nem por prata

Nem por sangue do dragão

Nem por rabo de lagarto

O cavaleiro vai-se embora muito triste e diz:

Ai que tão contente eu vinha

Tão triste me vou achar

Pedi a filha à Condessa

Condessa não ma quis dar

A Condessa fica com pena e chama:

Tornai atrás cavaleiro

Entrai por esses portais

Escolhei a mais bonita

Essa que gostardes mais

O cavaleiro canta alegre, escolhendo uma da roda:

Não te quero por seres rosa

Nem a ti por açucena

Quero-te por seres formosa

E por seres a mais morena

Jogava-se na Escola Primária.

Jogo do lenço: duas equipas atribuíam a cada elemento um número que permanecia em segredo. Definia-se um espaço e, ao centro deste, um elemento alheio às equipas segurava um lenço com o braço esticado. Quando este anunciava um número, o elemento referente de cada equipa corria para o lenço e tentava alcançá-lo primeiro que o adversário.

Jogo da malha: com uma malha (caco, pedra achatada) tentava-se avançar por «casas» (quadrados desenhados a giz no chão), lançando-a para dentro dessas «casas» sem «pisar o risco» (os seus limites). Após isto saltávamos ao pé cochinho de casa em casa, excepto na que continha a malha e, na volta, sempre ao pé cochinho, recolhíamos a malha e acabávamos o percurso. Em seguida passávamos à próxima «casa».

Jogo do «pónei»: havia duas equipas e um indivíduo isolado – a «travesseira». Este colocava-se encostado a uma parede. A primeira equipa, encostada a ele, agachava-se formando a montada. A equipa adversária, em corrida, saltava para cima deles. Ao saltar cada indivíduo anunciava, obrigatoriamente, a seguinte frase: «Pónei, catrapónei, aqui vai o pónei!». Se a montada «arrear», esta equipa perde. Se aguentarem o peso dos adversários, trocam com estes e são eles agora que saltam. Era um jogo, sobretudo, para os rapazes.

Conclusão: estes jogos usavam-se nas festas e romarias, aos domingos, e os miúdos da escola nos momentos livres; reportam-se aos séculos XVII, XVIII, XIX e XX ou até antes. Os jogos poderão não ser exclusivos do nosso concelho. Existiriam, certamente, noutros locais com este ou outro nome e, eventualmente, com algumas variantes.

Figuras ilustres

LUCINDA ROSA DE JESUS QUINTAS

Figura incontornável da vida cultural mirandense da primeira metade do século passado nasceu nesta vila a 9 de Fevereiro de 1887 numa casa da actual Rua Rosa Falcão que era, aliás, seu irmão. Os seus pais foram Maria das Dores e António Francisco Quintas. Deixou este mundo a 20 de Setembro de 1946 com 59 anos de idade e uma vida cheia.

A melhor síntese biográfica existente sobre esta Mulher, que poderá, eventualmente, ainda estar na retina de alguns mirandenses menos jovens, é da autoria de uma outra grande mulher, que igualmente dedicou a sua vida à docência e à intervenção social, Maria Emília Gameiro de Almeida. Foi publicada na edição de Outubro de 1978 do Jornal “Mirante”, da qual tomamos a liberdade de transcrever alguns parágrafos:

“Em 20 de Setembro de 1946, faleceu na vila de Miranda do Corvo, com 59 anos de idade, e após grande sofrimento, D. Lucinda Rosa de Jesus Quintas. (...) Dotada de espírito culto e inteligente, simples, franca e espontânea no seu trato amigo, sabia captar a simpatia daqueles com quem contactava.

Exerceu impecavelmente durante anos, a profissão de professora na escola de Lamas. Forte e corajosa nos seus compromissos, constante e perseverante, não afrouxava nem desistia dos planos que tomava.

Dedicava especial interesse e simpatia pelo canto, música, festas escolares e até extra-escolares. Apresentou várias récitas em Lamas e Miranda do Corvo, com fins beneficentes e educativos. Por vezes fez interessantes poesias, musicadas por Arlindo de Almeida, pessoa das suas relações de amizade.

Consagrou grande estima, protecção e apoio ao Grupo Recreativo Mirandense e à sua Filarmónica, que a tomou como sua (primeira) Madrinha. Nesta colectividade em 15 de Maio de 1942, a convite do presidente da direcção, Dr. Carlos Batalhão, também já falecido, pronunciou uma conferência subordinada ao tema “Mulher”, em que exaltava a figura da mulher como membro da família e da pátria.

Alegre e espirituosa, era grande animadora dos serões que nessa altura as senhoras de Miranda realizavam, confeccionando roupas para os mais desprotegidos. Apaixonada por Miranda, bairrista 100%, aproveitava todo o ensejo para exaltar a sua beleza e se interessar pelo seu progresso. No jornal “Alma Nova” que se publicou na Lousã, colaborou assiduamente na defesa e exaltação da sua terra.”

Escreveu sonetos, comunicações, artigos de jornal, peças de teatro dos quais destacamos “Miranda do Corvo”, “As Duas Senhoras da Piedade”, “Mulher”, “As Feiticeiras”, “Hino de Miranda”, “A Caridade”, entre outros.

O seu inegável apego à terra fez com algumas vezes tivesse entrado em conflito mais acérrimo pela defesa da sua vila como aquela disputa que manteve, em fins de 1935, no jornal “Alma Nova” com o professor Figueiredo Franco sobre uma visita por este efectuada à nossa vila em que o universitário sublinha “...a sua imundície” devido ao lixo acumulado pelas ruas.

Lucinda Quintas insurgiu-se frontalmente contra o professor acusando-o de só ter sublinhado aspectos negativos e nada ter referido de positivo da “Linda Miranda das Beiras” ao não falar, por exemplo, das diversas melhorias então em curso na vila levadas a cabo pela Câmara gerida por Firmino da Cunha e Fausto Lobo, outros dois distintos mirandenses.

Segundo apontava Lucinda Quintas ao professor ”...a montureira não era para alí chamada, quando muito deveria ser arrumada noutro lugar, bem longe, e depois lançar nela não sòmente o que viu em Miranda, mas também o que não deixou de ver nas outras vilas por onde passou e até na própria cidade donde partiu.” Devido aos imensos artigos de resposta e contra resposta entre os dois o jornal viu-se obrigado a encerrar a contenda deixando de publicar tais artigos.

D. Lucinda Quintas era irmã do Dr. Francisco Rosa Falcão, que foi secretário do ministro Dr. Manuel Rodrigues.

No primeiro aniversário do seu falecimento, um grupo de amigos prestou-lhe sentida homenagem, conforme atesta a inscrição gravada na sua campa. (...) filarmónicos e elementos do rancho do Grupo Recreativo Mirandense, juncaram-lhe o túmulo de flores, numa romagem de saudade.”

Acrescente-se ainda um outro pequeno episódio que pode ajudar a atestar, mais ainda, a abrangência da sua personalidade e o efeito que provocou naquelas que com ela conviveram: talvez devido ao facto de Lucinda Quintas não ser católica ou não demonstrar publicamente a sua fé, houve algum litígio aquando da sua morte entre os inúmeros amigos que lhe queriam prestar uma última homenagem.

O então pároco da vila, recusou que se prestasse um enterro católico a Lucinda Quintas, situação esta que provocou um ligeiro conflito com os amigos e admiradores da Senhora Professora. A situação só foi ultrapassada pela cedência do dito pároco perante a imensa pressão de todos aqueles que se juntaram para prestar uma última homenagem a Lucinda Quintas.

Como remata também essa outra grande mirandense que foi Maria Emília Gameiro de Almeida: “Se todos os mirandenses residentes ou nascidos em Miranda, fossem da rija têmpera desta senhora, teríamos sem dúvida uma terra mais progressiva e atraente. Miranda do Corvo tem para com Lucinda Quintas uma dívida de gratidão.”.

PADRE FERNANDO COIMBRA

Após 12 anos de sofrimento faleceu a 3 de Fevereiro de 1990, com 74 anos de idade, o Pe. Fernando dos Santos Coimbra, natural da freguesia de Almalaguês, onde nasceu a 27 de Janeiro de 1916.

«Ordenado em Coimbra a 29 de Junho de 1941, foi a seguir nomeado pároco de Tavarede e em 2 de Agosto de 1943 colocado pároco de Mortágua, até 2 de Agosto de 1948, data em que assumiu a paroquialidade da freguesia de Miranda do Corvo que exerceu durante 29 anos, até cair gravemente doente em 17 de Setembro de 1977.

A partir desta data recolheu-se ao Lar Dr. Clemente de Carvalho e aí terminou a sua vida neste mundo, rodeado de conforto e muito carinho não só das duas empregadas – Maria dos Anjos e Isabel Ferreira – que o acompanharam praticamente desde o início do funcionamento do Lar, mas também dos próprios utentes mais antigos, a quem sempre deu abundantes provas de amizade, resignação e humildade.

O trabalho de evangelização do Pe. Coimbra na paróquia de Miranda foi sempre orientado no princípio da construção de uma comunidade cristã autêntica. A sua preocupação constante era o preparar pessoas capazes de praticar um cristianismo incarnado na vida concreta de cada uma. Nas suas conversas havia sempre um sentido apostólico e a sua pregação era profunda. Por vezes notava-se que o seu entusiasmo o fazia esquecer o nível intelectual do auditório. Pairava muito alto em relação aos horizontes dos seus ouvintes.

Foi um sacerdote piedoso que orava e ensinava a orar. Dizia que durante as suas caminhadas, tanto a pé como de bicicleta, pela paróquia, a sua mente ia constantemente mergulhada na oração e até atribuía a esta prática a graça da abundância de ideias que sempre lhe ocorriam quando tinha de falar das coisas de Deus.

O Pe. Coimbra foi um grande amigo da Igreja e, já bastante doente e com imenso sacrifício, ainda concretizou o sonho de publicar um livro, a que chamou “A Igreja e a Democracia” onde expõe o seu pensamento, sempre de acordo com a doutrina da Igreja. Foi um grande amigo dos pobres do concelho e um fiel cumpridor do seu múnus sacerdotal que sempre executou com seriedade e amor.

As pessoas que melhor o conheceram viam nele o carisma do “Conselho”, através do qual muitas pessoas e famílias encontraram o rumo certo para as suas vidas.

Foi uma pessoa duma modéstia impressionante e sempre adoptou um teor de vida que não se afastava do nível geral da vida dos seus paroquianos. Mesmo depois da sua doença viveu e conviveu com os pobres do Lar a quem deu belos exemplos de humildade.

Miranda teve também no Pe. Coimbra um grande amigo, apaixonado pelo progresso da nossa terra e, no jornal inter paroquial por ele fundado juntamente com o então pároco da Lousã, a “Voz da Paróquia” defendeu com visão de futuro na coluna “Miranda quer viver” posições sobre o progresso de Miranda que ele adoptou como sua terra.

Um outro modo de motivar e mobilizar a opinião pública no caminho do progresso muito usado pelo Pe. Coimbra com sucesso, consistia em entusiasmar as pessoas amigas que ele julgava mais influentes a compreenderem e a aceitarem determinadas ideias por ele concebidas para o bem do povo. Ao fim de algum tempo estas ideias tinham fermentado o suficiente e as obras apareciam.

Foi assim a construção da residência paroquial (que era um repositório de lixos e silvas), das casas para os pobres e do “Património dos Pobres”, as obras do Calvário, a fundação e funcionamento do Lar Dr. Clemente de Carvalho e a construção ou reparação de diversas capelas e outras obras de carácter social.»

Relativamente ao Alto do Calcário – ou Caramito - o pároco Fernando dos Santos Coimbra apercebeu-se da beleza daquele local. Após mandar construir a residência paroquial no local actual, pensou o pároco em aproveitar aquele local para algo aprazível e acolhedor. Pediu então a colaboração do Sr. Fausto Branco, da Fábrica da Igreja e do Sr. Mário Antunes, um emigrante endinheirado do Brasil. Procedeu-se ao levantamento topográfico do local e fez-se um projecto.

«A Câmara de Miranda soube reconhecer o valor e a obra do Pe. Coimbra e atribuiu-lhe a medalha de mérito do concelho, imposta numa cerimónia em Miranda a que presidiu o então Presidente da República Gen. Ramalho Eanes.

Com a morte do Pe. Coimbra todos temos a consciência da perda de um grande amigo, e a melhor homenagem que podemos prestar à sua memória é sermos dignos continuadores daquilo que sempre esteve no seu pensamento: o amor a Deus e à Sua Igreja e o amor aos irmãos, particularmente aos mais pobres e desprotegidos (...)» (Cfr. Branco, 1990).

MARIA EMÍLIA GAMEIRO DE ALMEIDA

Nasceu na freguesia de S. Pedro de Alcântara, em Lisboa, no dia 11 de Novembro de 1906, filha de José Gameiro e de Carolina Malho Gameiro.

Ainda criança, veio viver para Miranda do Corvo e depois para Bruscos onde sua mãe leccionou durante muitos anos. Tal como sua mãe, fez estudos com vista ao exercício do magistério primário. Com apenas 18 anos iniciou-se no professorado, tendo feito da sua vida um sacerdócio em prol do ensino das crianças, com a responsabilidade de o fazer na fase que consideramos mais difícil e que é a de transformar um campo inculto num terreno propício a receber a semente.

Durante o seu longo magistério leccionou em escolas de várias localidades, algumas bem distantes do nosso concelho, numa época em que as distancias se venciam a pé ou, na melhor das hipóteses, utilizando animais de tiro ou bicicleta.

Iniciou a sua profissão de professora na escola de Mega de S. Domingos, no concelho de Góis, onde esteve apenas um ano lectivo, tendo passado depois sucessivamente pelas escolas de: Matas, concelho da Lousã; Espinho, concelho de Miranda do Corvo; Cumieira, concelho de Penela; Rio Fundeiro, Dornes, concelho de Ferreira do Zêzere (quatro anos); Lamas (seis anos); e Pereira (vinte e oito anos); estas três últimas no concelho de Miranda do Corvo.

Empreendedora, não se confinava ao ensino das matérias curriculares, conseguindo ainda tempo para dinamizar entre os seus alunos a prática de actividades lúdico/culturais. Com esses pequenos actores, levou à cena várias récitas e peças de teatro infantil, sendo a apresentação da grande maioria levada a efeito no salão de festas do Grupo Recreativo Mirandense e em benefício dessa colectividade.

Como prémio de uma vida dedicada ao ensino, foi condecorada pelo Sr. Presidente da República com a medalha da Ordem da Instrução Pública, no dia 10 de Junho de 1970. Depois de uma existência cheia de momentos dedicados ao ensino e paralelamente à beneficência, mormente por imperativo das suas convicções religiosas, a vida extinguiu-se-lhe em 8 de Dezembro, com 83 anos de idade. Nesta data a Filarmónica Mirandense perdia uma madrinha dedicada e Miranda do Corvo uma figura que muito amou esta nossa terra.

JOAQUIM AUGUSTO DE SOUSA REFÓIOS

Médico nascido em Miranda do Corvo a 11 de Abril de 1853 e falecido em Coimbra a 4 de Dezembro de 1905. Doutorou-se na Universidade de Coimbra a 13 de Julho de 1879, depois de ter cursado as faculdades de Matemática, Filosofia e Medicina, sempre com distinções e prémios, e foi nomeado em 29 de Dezembro de 1882 lente substituto e mais tarde lente catedrático. Foi também médico dos Hospitais da Universidade e da Misericórdia de Coimbra, além de outras corporações da mesma cidade. Militou no Partido Regenerador, mas distinguiu-se sobretudo como homem de ciência. Foi vítima de um atentado a tiro cometido pelo seu discípulo Rodrigo de Barros Teixeira dos Reis, depois internado num manicómio. Foi um dos fundadores da revista Movimento Médico.

ANTÓNIO DE ARRUDA FERRER CORREIA (1912-2003)

Licenciou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 1935 e aí se doutorou em 1939. Enquanto estudante, foi Presidente eleito da Associação Académica de Coimbra de 1932-33 e 1933-34.

Advogado, iniciou a carreira docente em 1940, como professor auxiliar na referida Faculdade, e em 1948 foi nomeado sucessivamente professor extraordinário e professor catedrático, depois de aprovado em concurso de provas públicas. Na mesma Faculdade, onde desempenhou os cargos de professor-secretário e professor-bibliotecário, ensinou, sucessiva ou cumulativamente, Introdução ao Estudo do Direito, Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Comercial e Direito Internacional Privado. Foi também professor da Faculté Internationale de Droit Compare (Estrasburgo) – onde regeu cursos sobre aplicação de regras de conflitos estrangeiros pelos tribunais nacionais, sociedades unipessoais, competência internacional dos tribunais e vontade das partes, regime jurídico das fundações jurídico-privadas de fim cultural ou cientifico e reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras. Em 1975 regeu na Haia, na Académie de Droit International, um curso sobre Les problèmes de codification en droit international privé. Desde 1981 regia a cadeira de Direito Internacional Privado na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa).

Fundou com outros professores, em 1965, o Centro de Direito Comparado da Universidade de Coimbra e, em 1774, o Centro Interdisciplinar de Estudos Jurídico-Económicos, de que foi, desde o seu início, Presidente do Conselho Directivo.

Participou no Congresso Ibero-Americano de Direito Internacional de Madrid (1951) e nos congressos organizados pelo Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional em São Paulo (1953), Lisboa (1972) e Madrid (1977). Interveio como relator-geral no VIII Congresso da Académie Internationale de Droit Compare, em Pescara (1970), e foi presidente de cinco das seis sessões que a Faculte Internationale de Droit Compare realizou em Portugal (1965, 1966, 1971, 1980 e 1987).

Proferiu conferências em diversas universidades e instituições, quer em Portugal, quer no estrangeiro, designadamente no Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belém do Pará, Salvador da Baía), Espanha (Santiago de Compostela, Madrid, Vitoria), França (Paris, Poitiers, Estrasburgo), Holanda (Haia, Utreque), Suiça (Genebra) e Áustria (Viena). Pronunciou o discurso comemorativo do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades na cerimónia nacional de 10 de Junho de 1983, realizada na Aula Magna da Universidade Clássica de Lisboa.

Participou nos trabalhos de preparação do Código Civil de 1966, como membro da respectiva Comissão, tendo, neste âmbito, elaborado dois anteprojectos sobre direitos dos estrangeiros e conflitos de leis (o segundo com a colaboração de J. Baptista Machado), um sobre pessoas colectivas e outro sobre contrato de sociedade (com a colaboração de V. Lobo Xavier), foi membro da comissão revisora do projecto da Parte Geral do Código Penal (1963), presidente da Comissão de Revisão do Código Comercial (1977) e da Comissão de Reforma da legislação comercial (1985).

Foi membro do conselho de redacção da Revista de Direito e de Estudos Sociais, de 1945 a 1950, co-director da mesma revista, de 1950 a 1951; foi, desde 1953, redactor da Revista de Legislação e de Jurisprudência e, desde 1975, director da Revista de Direito e Economia.

Pertenceu às seguintes agremiações científicas: Instituto de Coimbra, Sociedade Brasileira de Direito Internacional, Associação Internacional de Direito dos Seguros (comité português), Associação Internacional da Família e das Sucessões (São Paulo), Institut du Droit et dês Pratiques dês Affaires Internationales (Paris). Foi membro honorário do Instituto dos Advogados brasileiros e do Centro de Estudos Superiores do estado do Pará, Presidente honorário do Instituto Luso-Brasileiro de Direito Comparado e professor honorário da Faculdade Católica de Direito de Santos (Brasil). O seu nome foi escolhido para patrono da sessão de 1973 (Estrasburgo) da Faculte Internationale de Droit Compare.

Pertenceu ainda ao Instituto Hispânico-Luso-Americano de Direito Internacional (de que foi membro fundador e membro do primeiro conselho directivo), ao Instituto Helénico de Direito Internacional e Estrangeiro; à Associação Internacional de Ciências Jurídicas (comité português), à Académie Internationale de Droit Compare (Paris), e à Association Internationale de Droit Compare (Paris).

Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo (1966), a Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago de Espada (1982), a Grã-Cruz da ordem de Instrução Pública (1990), a Grã-Cruz com estrela e banda da Ordem de mérito da República Federal da Alemanha (1980), a Grã-Cruz da Ordem de Mérito da República Italiana (1982) e a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco, Brasil (1987). Em 1984 foi-lhe atribuída a medalha de ouro da cidade de Coimbra e em 1996 a do concelho de Miranda do Corvo.

Foi Director (1974), Presidente da 1ª Comissão de Gestão (1974-1975) e do 1º Conselho Directivo (1975-1976) da Faculdade de Direito de Coimbra e Reitor da Universidade de Coimbra (de 1976 a 1982).

Em 1982, quando da sua jubilação, a Universidade de Coimbra atribuiu-lhe o título de seu Reitor honorário (atribuição homologada pelo Ministério da Educação).

Em 1985 foi eleito pela Assembleia da República vogal do Conselho Superior da Magistratura e em 1986 designado pelo Ministro da Justiça para o cargo de Presidente da secção portuguesa da Comissão Internacional do Estado Civil (C.I.E.C.). Foi membro fundador da Associação “Fondation de l’Université de l’Europe” (Paris).

Fez parte desde 1959 do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo sido nomeado Vice-Presidente em 1991 e eleito Presidente em 1993.

Doutor “honoris-causa” pelas Universidades de Aveiro e Federal do Rio de Janeiro (1989). Foi sócio honorário da Academia das Ciências de Lisboa e membro das Ordens Honorificas Portuguesas.

Associado do Instituto de Droit International a partir de 1977, membro honorário do mesmo Instituto a partir de 1997 e relator da 12ª Comissão (venda internacional de objectos de arte) na sessão de Bâle de 1991. Foi Presidente do Instituto de Setembro de 1993 a Setembro de 1995.

Juiz ad hoc do Tribunal Internacional de Justiça pela parte portuguesa, no pleito de Portugal contra a Austrália (caso de Timor Oriental).

Autor de vasta bibliografia, publicada em Portugal e no estrangeiro, sobre temas da sua especialidade.

JOSÉ JOAQUIM PEREIRA FALCÃO

“Falou-se aqui, há algum tempo, com relativa largueza, dum mirandense que teve certo vulto na vida local: Leonardo Fernandes Falcão, de Pousafoles, freguesia de Lamas, que, pelo casamento com uma senhora do lugar da Pereira, se fixou em Miranda.

Poderemos hoje falar, pois, do filho mais velho dele, que foi professor de Matemática na Universidade e que deixou nome como professor e como cidadão exemplar: o Dr. José Joaquim Pereira Falcão – mais geralmente conhecido por dois nomes apenas: o Dr. José Falcão.

Nasceu no lugar da Pereira no dia 1 de Junho de 1841, há 124 anos, pelas 6 horas e um quarto da tarde, na casa da família materna, ao cabo do lugar onde, há uns 40 para 50 anos funcionava (e não sei se ainda hoje) a Escola Primária do sexo feminino. Sua Mãe era D. Maria Miquelina Xavier Pereira filha do abastado proprietário Manuel Joaquim Pereira.

Foi baptizado na vizinha capela de Santa Luzia, do mesmo lugar, em 21 do dito mês pelo Pe. Bernardino Vasco da Gama e foram seus padrinhos a tia materna D. Maria Carolina e seu marido o Dr. José Joaquim de Abreu e Sousa, da Tróia, antigo Capitão-Mór nos tempos do reinado de D. Miguel.

Ouvi sempre dizer que nasceu muito fraco e que teve os primeiros tempos de saúde precária. No entanto, aos 10 anos, o Pai levou-o a Coimbra, para casa do «Sr. João do Correio para ver se fazia exame de primeiras letras». Foi levado a 11 de Outubro de 1851 e a hospedagem foi contratada por «3:000 reis e dois alqueires de farinha».

Não conheço pormenores do período seguinte; porém, a 7 de Outubro de 1857, o estudante José Joaquim Pereira Falcão foi admitido ao 1º ano da Faculdade de Matemática depois de apresentar certidões de idade, e dos exames de Instrução primária, de tradução do Francês, de Latinidade, Filosofia, Retórica, Moral, Gramática e Introdução à História Natural dos três Reinos.

Apesar de estudante distinto, José Falcão perdeu este 1º ano.

Contou-me o falecido General Francisco Augusto Martins de Carvalho que ouvira várias vezes a seu Pai, o velho jornalista Joaquim Martins de Carvalho explicar as razões desta perda do ano.

No acto, quase no fim de ser interrogado pelo Professor Dr. António José Teixeira (que era da velha escola e saíra muito fora do ponto) José Falcão observou serenamente:

- V. Ex.ª tem saído fora do ponto que tirei.

O professor puxou dum volume dos Estatutos universitários e leu-lhe o artigo que impunha aos alunos a obrigação de responderem a todas as matérias versadas durante o ano; e como não gostasse de observações de qualquer espécie fez a seguir tão apertado interrogatório que o aluno, muito naturalmente, fraquejou. O resultado foi a reprovação que obrigou José Falcão, como repetente, a matricular-se novamente no 1º ano em 8 de Outubro de 1858.

Fez o seu acto, a 13 de Julho de 1859, sem novidade, perante os Drs. Raimundo Venâncio Rodrigues e Jácome Sarmento de Vasconcelos e Castro, aprovado nemine discrepante e seguiu o curso, com distintas classificações – curso que concluiu em 1865, precisamente há um século.

Ora José Falcão caiu em Coimbra «de tão lavados e doces ares» (como escreve Eça) em uma época de «grande tumulto mental» quando «apareceu uma extraordinária geração já fora do Catolicismo e do Romantismo, ou tendo-se emancipado deles, reclamando-se exclusivamente da Revolução e para a Revolução».

Viu-se envolvido na «forte e intensa vida mental desse esplêndido ciclo coimbrão que tão grande influência teve no movimento das ideias políticas, sociais e literárias do último quartel do século XIX».

Com espírito liberto de preconceitos, mas calmo e fundamente tolerante, integrou-se facilmente no ambiente «rebelde a todo o ensino tradicional» e teria sentido sinceramente o incidente com o mestre que o levou à perda do ano.

Não era, como quer Bulhão Pato, «revolucionário de temperamento»; a fraca saúde que tinha também ajudaria um pouco a sua compleição serena, sem exaltações; e assim, o caso simples mas desagradável ocorrido com o professor Teixeira, viria antes da sinceridade e inteireza moral que mais tarde o impuseram a todos os contemporâneos do que a puro impulso de irreverência estudantil.

A notável geração chamada «de Setenta» (fizera uma «descoberta suprema» apregoada «por todos os botequins» de Coimbra; essa descoberta era simplesmente – a Humanidade...E de noite, por essa altura, «o ar de Coimbra andava todo fremente de versos...».

Devia ser um ambiente extraordinário esse que José Falcão encontrou na velha cidade universitária, ambiente em que as inteligências se encontravam ligadas pelo «amor às ideias em si mesmas como elemento vital de espirito» - ambiente, repetimos, em que, conforme o testemunho de um contemporâneo, «a grande avalanche vinda dos dois lados dos Alpes caíra de repente sobre o nosso chão...»

O moço estudante mirandense, com viva inteligência e apto, pela educação recebida, para compreender todo esse movimento de ideias, sentir-se-ia atraído para o magnífico conjunto de rapazes que no seu entusiasmo irreverente pensava em plantar uma tenda em cada estrela antecipando-se de um século (vá lá, sem ironia!) aos modernos astronautas...

Por sua vez, dizem-no os contemporâneos, José Falcão embora sem querer sobressair «possuía a misteriosa simpatia, força de atracção: irresistível» que o impunham no meio académico. Como tal foi escolhido para fazer parte da comissão de estudantes que devia acompanhar Antero de Quental nos cumprimentos ao Príncipe Humberto, de Itália, na sua passagem por Coimbra e sabe-se que foi apontado por Antero como um dos «rapazes novos e independentes» como quem já pensava organizar as futuras Conferências Livres.

São inúmeras as referências que se encontram em obras dos contemporâneos da Universidade, todos eles comprovando o seu carácter nobre, a sua honrada austeridade, o seu elevado espírito de compreensão e tolerância e a sua lúcida e viva inteligência que o impuseram à simpatia de todos – e como tal lembrado ao longo dos anos.

Terminado o curso de Matemática, como se disse, em 1865 (há precisamente um século) preparou-se para o 6º ano ou Licenciatura em que ficou aprovado e classificado; em 1869 aos 17 de Julho; defendeu conclusões Magnas e em 31 do mesmo mês recebeu o grau de Doutor com a costumada solenidade na Sala dos Capelos.

A sua acção docente começou pela cadeira de Mecânica Celeste e foi, em Novembro de 1870 nomeado ajudante do Observatório Astronómico cargo de que tomou posse em 1 de Outubro seguinte.

Estava, pois, lançado na vida antes dos 30 anos; e ainda antes de os completar casou com D. Beatriz de Campos Vidal, filha do Professor universitário da Faculdade de Filosofia, o Dr. António José Rodrigues Vidal.

Mas, embora assente na vida, rodeado de certo prestígio, o Dr. José Falcão não pôs de lado comodamente as suas ideias políticas em parte vindas da família, em parte (e em maior número) absorvidas no ambiente académico.

E exactamente quando assentou na vida de professor e constituiu família, deu-se em França o grande episódio de Comuna que atordoou a Europa e foi interpretado, e ainda hoje, tão diversamente.

Dr. José Falcão «entrou em combate» defendendo-se com o opúsculo A Comuna de Paris e o Governo de Versalhes, hoje espécie bibliográfica bastante rara.

Essa defesa que tomou dos insurrectos era ditada pelo seu espirito de tolerância e rigidez moral; sentiu a ferocidade levada a extremos da repressão de Versalhes e mostrou que «a sua bondade não era feita das convenções sociais da honra e dignidade» mas sim de justiça e compreensão.

O opúsculo, escrito aliás com severa objectividade causou, como era natural, certa admiração para não dizer escândalo e esgotou-se rapidamente. Foi então proibido por ordem do ministro Duque de Ávila e mandado processar e por causa disso o Administrador da Imprensa da Universidade (onde foi impressa a 1.ª edição) teve ainda alguns amargos de boca.

E Eça de Queiroz aproveitou o facto para comentar alegremente: «O livro é publicado em Maio, esgotado em Junho e proibido em Julho!

A única crítica é a gargalhada!» e mais adiante acrescentou: «Pois não pertence a História ao puro domínio do pensamento?».

Foi este caso do opúsculo, na verdade, o seu primeiro combate que aliás não fez descer o autor do alto conceito em que era tido e apreciado.

Continuando...

Passaram-se anos sobre o incidente do folheto A Comuna de Paris; o Dr. José Falcão exercia o professorado com sinceridade; os seus estudos (desde o concurso) acerca das teorias do complicado Wronski, deram-lhe certa nomeada pelo ineditismo de interpretação.

Mas nunca deixou de preocupar-se com outros assuntos extra-escolares quer internos quer externos.

Perante o que se passava no País, ouvi dizer (em novo) a alguns dos contemporâneos que com ele conviveram que, nos seus conselhos ou simples opiniões, era de uma calma moderação, consequência não só do temperamento senão também do acertado e um tanto ou quanto céptico, conhecimento dos homens.

A política parece não o seduzir; observa, porém, com clareza o caminhar das ideias e nem sempre concordava com os processos.

A sua acção no movimento republicano, já, então, em certa efervescência, foi intencionalmente benéfica ou, se quiserem, «idílica e simples» como afirmou um dos seus grandes admiradores e amigos; no entretanto acompanhava de perto esse constante evolucionar ou avolumar da onda de propaganda como vigilante acautelado.

A política estrangeira, porém, atraia-o e a critica que por vezes fazia nos jornais (como n’ A Justiça de Coimbra, em 1878 era duma «clareza maravilhosa, pelos processos críticos os mais penetrantes e os mais subtis».

Era uma espécie de evasão para as preocupações e dúvidas que sobrecarregam o seu espírito ávido de precisão e calma. E assim surgiu um livro hoje esquecido e raro mas que tem ainda actualmente especial oportunidade: A África e as Colónias Portuguesas. I – A Questão do Zaire, sugerido pelos problemas que o Congresso de Berlim levantou e anda hoje, segundo parece, se mantêm.

É uma análise esclarecida da questão que apresentava certos perigos para os nossos domínios e interesses em África; e nele mostra conhecimentos largos sobre a geografia e etnografia do continente negro, sobre a história da acção portuguesa na costa ocidental e sobre as ambições de outros países em nítida expansão colonial.

Foi, pois, uma obra oportuna que a opinião pública recebeu bem; oficialmente a nossa política externa andava bastante inclinada para a Alemanha e daquele congresso veio a perda de territórios e influência a favor do engrandecimento da expansão belga, bem como das regiões ao sul do Cunene entregues à expansão alemã.

Tudo isto o Dr. José Falcão expôs e comentou com clareza; e todos os problemas expostos ainda hoje, infelizmente, mantêm certa importância perante os sucessos a que todos nós temos assistido nos últimos tempos.

Foi um brado patriótico e algum tanto profético, discutido na época, mas que ficou, porventura por vir de tal autor, um pouco abandonado a um fácil esquecimento. E neste momento difícil da nossa história ultramarina, as Velharias crêem que ninguém, nem mesmo por curiosidade, chamou a atenção para essa obra tão elevada e hoje reduzida modestamente a raridade bibliográfica que os próprios alfarrabistas mal conhecem.

Quanto à propaganda republicana, como era, ao mesmo tempo, «doutrinário de coração e de pulso», o seu temperamento ordeiro e a sua formação matemática, queriam dar-lhe orientação disciplinada e coesa, capaz de impor aos adversários a confiança nos seus princípios e na sua conduta que deveria ser exemplar.

Era obra, porém, grande de mais; o vulto de José Falcão, como escreveu José Caldas, era desproporcionado «com o nosso meio social cínico e decrépito» - e daí o desalento que nos últimos tempos o envolveu e o levou a escrever o célebre artigo no diário portuense A Voz Pública.

Este artigo mereceu referência calorosa escrita pelo então jornalista José Maria de Alpoim, perante a sua «coragem cívica» e «rigorosa abnegação» - e levou António Sardinha a comparar (cremos que impropriamente) a sua atitude com situações políticas posteriores bastante diferentes.

O Dr. José Falcão entendia que uma mudança de regime implicava a necessidade da educação popular – pois o país não estava preparado para isso. Foi levado por esse critério e pela boa intenção de dar a conhecer o que deveria ser um regime democrático que escreveu o livrinho Cartilha do Povo escrito em linguagem muito simples, dialogada, de forma atraente e o mais acessível a todas as inteligências.

O opúsculo teve enorme êxito; espalharam-se largamente pelo País as suas cinco primeiras edições e mereceu da crítica referências de vária espécie que, em todo o caso, frisavam o tom educativo e a clareza da exposição.

O período que coincidiu com o êxito da Cartilha foi de organização do Partido Republicano que tomou certo vulto a seguir ao Centenário de Camões.

Contudo, como se disse atrás, a política, propriamente, não o seduzia esse a sua acção se notabilizou foi pela intenção de formar um partido coeso, capaz de, pela «disciplinação das energias» inspirar confiança à Nação e aos próprios adversários que, aliás, sempre o consideraram e respeitaram.

Percorrendo os jornais desse tempo, a figura do Dr. José Falcão aparece, na verdade, a gregos e a troianos, como inconfundível – quer como professor que os discípulos estimavam sinceramente e que «a Ciência considerava entre os seus primeiros filhos», quer como simples cidadão cuja convivência era procurada com interesse devido à elegância moral da conversa e aos conceitos sérios que dela promanavam, quer ainda como democrata para quem a luta política era consequência da convicção intima eivada fortemente de tolerância e de compreensão inteligente.

Um lousanense que foi seu condiscípulo durante um ano lectivo na Faculdade de Filosofia escreveu que «a pujança do seu espirito e a bondade do seu coração disputaram entre si primazias» e que embora «apóstolo convicto das ideias republicanas, é certo que a Salus populi do Direito Público romano era a sua preocupação constante, o seu labutar contínuo».

É exactamente esse trabalho a que se votou, em especial depois do desastre de 31 de Janeiro, abalou-lhe a saúde já de si precária; a tuberculose minava-o e não só o trabalho como as preocupações (e porventura decepções) arruinaram-lhe, de vez, o organismo.

A 14 de Janeiro de 1893, 26 minutos depois do meio-dia, o Dr. José Falcão faleceu com 52 anos, a seguir a curta agonia que um volvo veio complicar.

E no dia seguinte o funeral (que foi católico, a seu pedido, segundo se disse) constituiu uma manifestação rara de homenagem que me recordo de presenciar, a caminho dos Olivais, na tarde fria de 15 de Janeiro.

A notícia da morte, causou tristeza em toda a população da cidade; a própria Academia «bando alegre de rapazes, bons e irreflectidos» vibrou com emoção e o Dr. Teixeira de Carvalho comentou: «nunca vimos tanta tristeza, dor tão profunda em ânimos juvenis».

Em todo o País o desaparecimento deste «homem complexo pelo saber, pela austera moral, pela linha recta de toda a sua existência» como afirmou um seu contemporâneo da Universidade, causou impressão e essa impressão traduz-se num passo dum artigo da Gazeta Nacional, de Coimbra, que resume o que as velharias poderiam dizer: «É uma consolação para quem sinceramente preza este País, sentir em todos os campos políticos o ensarilhar das armas, e ver que os homens mais notáveis de todos os partidos, dominados pelo mais profundo respeito, se curvaram reverentes, na manifestação de uma dor geral, perante o nome de um homem que passa à história prestigioso e imaculado».

No funeral, os discursos disseram bem o pesar de todos; e nos jornais do País, de norte a sul e colónias, quer nas simples notícias quer em artigos, o mesmo sentimento de pesar transparecia e as mesmas palavras de justiça vindas de todos os campos.

Podem fechar-se estas velharias em lembrança do, certamente, mais notável mirandense, com o seguinte passo de Benan: «Le but d’une vie noble droi être une poursuite idéale et désinteressée» (Cfr. Pimenta, “Alma Nova”).

BELISÁRIO MARIA BUSTORF DA SILVA PINTO PIMENTA

Nasceu em Coimbra a 3 de Outubro de 1879, numa casa da Praça Velha (hoje Praça do Comércio). O n.º 11 ostentava na época o anúncio da “Tipografia Auxiliar de Escritório”, fundada por seu avô Manuel Caetano da Silva.

Nesta cidade, fez o curso liceal e os preparatórios na Universidade, a fim de ingressar na Escola do Exército, tendo feito o curso de Infantaria.

Foi comandante do Regimento de Infantaria 7, Comissário de Polícia de Coimbra nos inícios da República, vogal do Conselho de Arte e Arqueologia da 2ª circunscrição e sócio da Sociedade de Estudos Históricos, bem como do Instituto de Coimbra e da Associação de Arqueólogos Portugueses.

Oficial Superior, possuía a medalha de ouro de comportamento exemplar e o grau de grande oficial da Ordem Militar de Avis.

Dotado de uma profunda e vasta erudição, consagrou-se de uma forma especial ao estudo dos problemas históricos de índole militar.

Realizou várias conferências, designadamente acerca do artista António Augusto Gonçalves e colaborou além disso, em diversas revistas e jornais. Publicou numerosas obras de carácter histórico, entre as quais não podem deixar de mencionar-se as seguintes: “ O combate de 24 de Junho de 1828 na Cruz dos Morouços”, “Descrição da Fortaleza de Mazagão (1615-1619) ” “As Cartas do Infante D. Pedro à Câmara de Coimbra (1429-1448) ” “A acção do dia 11 de Agosto de 1829 na Vila da Praia da Terceira ”, “Nun´Álvares, chefe militar”, “O Ardil de Correia Leal (Episódio da retirada de Massena em 1811) ”, “Notas para a História da Guerra Peninsular”, “O problema dos comandos na Guerra da Restauração”, “ O sistema militar de Nun´Álvares”, “Esboço das ideias militares em Portugal”, “A propósito da retirada de Soult em 1809”, “Camões e as artes bélicas”, “O memorial de Matias de Albuquerque (Notas para a sua biografia)”, “ A Batalha do Montijo (Notas para a comemoração do seu 3º centenário)”, “António Augusto Gonçalves”, “Invasões Francesas (Notas para a sua história no distrito de Aveiro), “Eça de Queirós (Alguns aspectos militares na sua obra), “As duas Guararapas”, “A Campanha de 1801 (Ligeiras considerações a propósito duns documentos)”, “O Arquivo Municipal de Miranda do Corvo”, “Subsídios para a história dos partidos médicos em Portugal”, “O partido médico de Miranda do Corvo”, “Miranda de outros tempos (Notas para a história local), “A campanha de Massena em Portugal (Capítulos de uma monografia local)”, “Oleiros de Miranda do Corvo”, “Uma epidemia em 1811. Capítulo da história do Concelho de Miranda do Corvo”, “Um neto de Gil Vicente”, “Uma litografia desconhecida”, “Miranda do Corvo (Notas)”, “Cancioneiro popular de Miranda do Corvo”, “Albino Caetano de Sousa, Gravador em madeira (1859-1928)” e “As ideias militares do Marechal Saldanha”.

Historiador, conferencista e também artista, pois que se dedicou à gravura em madeira, chegando a ilustrar alguns livros com grande rigor de execução técnica. Faleceu em Lisboa a 10 de Novembro de 1969, deixando o seu espólio em testamento à Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Os documentos foram entregues por sua filha, Maria Helena Pimenta em 31 de Agosto de 1970, com a indicação do seu conteúdo só poder ser divulgado a partir de 10 de Novembro de 1989.

Motivações: na tentativa de aprofundar as motivações de Belisário Pimenta para o trabalho histórico a que dedicou toda a sua longa vida, “escavei” (como diria o Coronel), por entre os seus manuscritos.

Numas notas biográficas escritas por sua filha, pode ler-se: “1926 – Pouco tempo depois da Revolução Nacional, Belisário Pimenta é afastado do serviço activo por não ter aderido ao movimento político – Esse facto que lhe acarretou certos dissabores até financeiros, teve por outro lado uma consequência benéfica: deixar-lhe tempo livre para o trabalho de investigação.”

Mas nada como as palavras do próprio, para ilustrar de forma clara o momento em que teve início a actividade que iria preencher os seus dias: “O ano de 1911 acabou tristemente; o governo de João Chagas não se aguentou perante as arremetidas dos já chamados democráticos, ávidos de governarem sós, sem apoio dos outros partidos, no esquecimento completo do perigo que essa atitude representava para a República ainda a precisar de todas as vontades. Eu então voltei-me para os trabalhos de História como evasão de tantas preocupações e desilusões. Lembro-me de que me surgiu a ideia de deslindar o combate da Cruz dos Morouços em 1828

Travara relações com o General reformado Francisco Augusto Martins de Carvalho que todas as noites, ou quase todas, ia conversar um pouco para a tabacaria Crespo, na Calçada, numa casa que ardeu, perto do começo da subida p.ª a rua Corpo de Deus. Um dia falei-lhe no assunto; ele ofereceu logo a sua livraria, riquíssima em obras relativas aquela época e eu aceitei logo e fui, de facto, um assíduo frequentador da hospitaleira biblioteca onde passei horas e horas muito agradáveis.” (Ms. 3363 - Vol. 10)

A obra de toda a sua vida foi a monografia sobre Miranda do Corvo. Porquê Miranda do Corvo? É também nas “Memórias” que aparece deslindada a sua ligação a esta terra: “Voltava-me para os meus livros, arquitectava vagamente trabalhos históricos; o estudo acerca da acção na Cruz dos Morouços em 1828 que ia projectando por bocados, embora só começasse a escrevê-lo no mês de Novembro, entretinha-me consoladoramente o espírito; ao mesmo tempo, qualquer coisa de ancestral me levava a imaginação para uma vida sossegada, no campo...

E assim ia imaginando uma casa de aspecto simples, por cujas janelas se avistasse a verdura dos campos, com cenário de serras ao fundo sobre as quais a luz do sol, ao entardecer, desse amoráveis tonalidades.

É claro que toda esta exuberância de imaginação se localizava em Miranda do Corvo que nunca esqueci desde os meus remotos anos de meninice, quando corria pela Quinta da Cerrada da Nora ou me ficava a olhar a represa do Alhêda junto da grande nora que deu o nome à propriedade, admirando inúmeros alfaiates a girarem à superfície da agua, às voltas e reviravoltas; quando contemplava a serra que às vezes, a certas horas, metia medo como muralha escura que se levantasse no extremo da planície...”.

Foi em 1912 que iniciou a sua investigação sobre Miranda do Corvo. Pessoa de rigoroso método de trabalho, desiludido com os acontecimentos políticos da época, diz a certa altura das “Memórias”: “Esta situação no Regimento de Infantaria de Reserva n.º 23, como situação meramente burocrática, dava-me liberdade para me lançar com certo desafogo aos trabalhos da projectada monografia sobre Miranda do Corvo que no ano seguinte teve grande impulso, infelizmente sem qualquer resultado apreciável ou até vagamente apreciável como, com o correr do tempo se verificou. E assim o ano de 1912 acabou com ver-me livre do Grupo de Metralhadoras, do Comandante Teotónio Moniz, das subidas e descidas da Couraça de Lisboa e da ladeira de Stª. Isabel e dos julgamentos dos implicados nas intentonas monárquicas que muitas vezes me davam a impressão de porcaria.”

Os trabalhos históricos de carácter militar, mereceram-lhe em 1932, da parte de um seu superior, o general Teixeira Botelho, as seguintes palavras: “O Sr. Major Belisário Pimenta é um caso novo e único na nossa historiografia militar...Há nesses trabalhos crítica séria, investigação levada a um apuro pouco ou quasi nada usado, uma forma literária curiosa que denuncia cultura larga...” E foi esse caracter inovador que imprimiu a todas as suas pesquisas.

Passou largo tempo em Miranda do Corvo. Fazia grandes caminhadas pelas aldeias afastadas, correu a serra, subiu ao Monte de S. Gens, conheceu o aglomerado da Serrinha e todos os recantos desconhecidos. Um verdadeiro “trabalho de campo”, fruto talvez da sua faceta militar e próprio do homem activo que era.

O rigor da investigação, a busca da verdade histórica, levou-o a percorrer todo o concelho procurando informação e documentos. Copiava documentação dos arquivos das Confrarias, da residência paroquial e dos arquivos de casas particulares. Eis a sua opinião sobre este assunto: “Fui, repito, (e ainda sou) homem do séc. XIX; veio comigo, desse século tão malquistado, grande dose de inconformismo – eivado porem de grande dose de tolerância ligada à calma e consciente dedicação pelos Princípios... também vem comigo o maior respeito pela busca da Verdade Histórica, quer essa busca se faça como “escrivão da verdade” à maneira de Fernão Lopes quer como psicólogo segundo ainda não há muito tempo preconizava o infeliz Marc Bloch”.

Em Agosto de 1966, (segundo informação de sua filha) ofereceu ao Arquivo da Universidade de Coimbra 72 volumes de documentos copiados nos mais variados arquivos.

Descreve assim o seu dia-a-dia por essa altura em Coimbra: “Assim, com o serviço do Regimento de Infantaria de Reserva 23 apenas burocrático e com a tolerância do excelente tenente-coronel Francisco Gomes, eu lancei-me de alma e coração às pesquisas da história de Miranda do Corvo. Saía do quartel e subia à Biblioteca da Universidade ou ao Arquivo da mesma recentemente aberto ao público. O Dr. António Garcia Ribeiro de Vasconcelos levou-me um dia paternalmente ao Arquivo que organizara de modo a poder ser frequentado pelo público e pelos estudantes que tivessem que tirar a cadeira de Paleografia. Mostrou-me tudo, explicou, indicou as estantes onde estavam os códices que me poderiam interessar e disse ao servente (único pessoal naquela altura, por sinal o antigo sacristão da capela universitária) que eu poderia dispor, a meu talante, de toda aquela papelada e livraria – amabilidade que não posso esquecer.”

Esta monografia, porém, nunca chegará a ser publicada. Nas “Memórias” encontra-se por diversas vezes a expressão da mágoa com que via “perderem-se” tantas horas de investigação, sem atingir o objectivo desejado: “...- tudo para a desejada monografia que me consumiu anos de trabalho, canseiras e despesas e ficou em “águas de bacalhau” como a maior parte dos sonhos ambiciosos.”

Nas primeiras folhas da sua “Monografia” pode ler-se a seguinte dedicatória: “À memória dos meus avós do ramo mirandense que labutaram nas terras férteis do vale do Dueça com a enxada e o arado ou modularam com amor e ingenuidade os lindos barros vermelhos que a Coimbra-Doutora, por ser doutora, teima em chamar seus.”

“Pois é verdade... As velharias têem que acabar. Diz o ditado que não há mal que sempre dure e os raros leitores que há uns bons dez anos têem o mau gosto de ler a secção, ficarão aliviados desse desenrolar de fita mirandense, desse coscuvilhar de vidas alheias como causticou Camilo e do relato de sucessos que não tiram nem põem para o valor de História – tão reduzidos eles estavam apenas à ampla bacia hidrográfica de parte do curso do Dueça.

Desde os começos (há bons 53 anos) das buscas de documentos e estudos acerca de história mirandense umas e outros feitos com a melhor intenção e, diga-se abertamente, sem prejudicar ninguém, houve, com duas ou três honrosas excepções uma indiferença local bem nítida quando, por vezes, não foi até a má vontade disfarçada com atitudes de falsa amabilidade.

Porquê? É certo que esse trabalho, aliás sempre ingrato estava apenas dentro de intuitos de esclarecimento dum passado desconhecido, passado de que até há 53 anos ninguém tentara fazer e só podia contribuir para prestígio da região.

Houve quem dissesse que Miranda do Corvo não tinha história e que não valia a pena o esforço de a procurar. O dito não tinha base e as pesquisas revelaram que a região tinha história de que se podia ufanar.

Mas o trabalho de escavador dava que pensar a muito boa gente... E como há sempre quem pense mal das boas iniciativas e não conceba que haja boa acção sem no fundo haver qualquer interesse, começou a germinar a planta ruim da suspeita: qual a razão e o fim desses estudos? – suspeita que não era novidade na terra, tantas vezes ela tem surgido ao longo dos anos!” .

Eis o índice proposto para a obra nunca publicada retirado das memórias de Belisário Pimenta que fazem parte do espólio doado pela sua família ao Arquivo Geral da Universidade de Coimbra:

“DAS ORIGENS AOS FINS DO SÉCULO XVI

Sumário

Ideia geral do concelho de Miranda do Corvo

Origens fantasiosas

Origens prováveis

Ideia da evolução até fins do séc. XVI

Etimologia de “Miranda” e mudança do nome

O Castelo

Os forais: o de 1136 e o de 1503

A superfície e a população

A Câmara Municipal: os magistrados; o selo e o brasão; o edifício

O pelourinho e a forca. O alcaide

Os juízes dos órfãos e os tabeliães; os juízes das cisas

Os donatários

A Igreja matriz e os seus Priores

As Igrejas anexas e os seus curas

I– Lamas

II– Campelo

A população: I – O clero

Fr. Nicolau Vieira

A população: II – A Nobreza e o Povo

Belchior Vicente, juíz dos órfãos

Os Sousas.”

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Mapa Corografico do Reino de Portugal e Algarves, publicado por W. Faden, London, 1797, edição de 1809

Carta militar das principaes estradas de Portugal por Romão Eloy d’ Almeida, 1808, Gravura a preto medindo 1m, 39 x 0,74m

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